Albina não precisava de ler para cortar cabeças de peixe. Agora voltou à escola

O +Literacia, projecto destinado à alfabetização de adultos do concelho de Matosinhos, a terminar em Abril o primeiro ano de actividade, tem como finalidade erradicar o analfabetismo dentro da população activa, que é de aproximadamente 500 pessoas.

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Paulo Pimenta
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“Senhor professor, corre escreve-se com um r ou com dois?”. O professor pergunta como se lê se for escrito só com um. “Pois, tem que ser com dois”, emenda Albina Neiva, com 48 anos, uma dos 100 alunos do +Literacia, projecto da Associação para o Desenvolvimento Integrado de Matosinhos (ADEIMA), destinado à alfabetização de adultos em idade activa do concelho, que em Abril deste ano encerra o primeiro ano de actividade.

Albina faz um exercício. Estão mais quatro alunas na sala de aula, todas com exercícios diferentes. Normalmente estão mais pessoas. No dia em que o PÚBLICO visitou a Loja de Emprego, no edifício dos antigos passos do concelho, na rua Brito Capelo, alguns não apareceram. Noutros pontos do município, no Centro Comunitário de Custóias e na Casa da Cultura de Perafita, ao mesmo tempo, estão outras aulas a decorrer.

Num caderno há uma sequência de imagens ilustradas. É tarefa desta aluna fazer uma descrição do que lá está, por escrito. Em letra redonda e bem desenhada escreve o que vê na primeira imagem: “O homem corre na floresta”. No segundo quadrado da narrativa há um lobo que aparece no fundo. “Mais tarde (o homem) dá fé do lobo e corre” - imagina uma história de perseguição e fuga, sem erros ortográficos no papel.

Quando o projecto começou, em Abril do ano passado, escrevia apenas o nome. Saiu da escola na segunda classe. Pouco se lembra do que lhe ensinaram na altura e desconfiava já não ser capaz de conseguir aprender. Trabalhou “uma vida inteira” em mais do que uma “das muitas” fábricas de conservas que existiam em Matosinhos. “Foi tudo fechando. Hoje deve haver duas ou três”, diz. As fábricas foram fechando e o emprego na área em que sempre trabalhou foi escasseando.

Depois das conserveiras, trabalhou em alguns cafés e pastelarias, mas aí já sentia que não saber ler ou escrever lhe traziam algumas dificuldades. “Hoje há muitos marcas de bebidas com nomes complicados. Tentar ler o menu era um problema”. Há 15 anos que está desempregada. “Agora pedem pelo menos o 9º ano para tudo. Para cortar cabeças de peixe não era preciso saber ler nem escrever”, afirma.         

Quer voltar ao mercado do trabalho: “Sou nova e ainda me faltam muitos anos para a reforma”. Já foi a várias entrevistas de emprego, mas esbarra sempre com o mesmo problema. Deixou a escola para ir trabalhar e agora quer trabalhar e precisa da escola. Houve alturas em que pensava já não ser capaz de assimilar novos conhecimentos. “Já não tenho idade para aprender”, disse “muitas vezes”. No Centro de Emprego local foi-lhe dado a conhecer o projecto levado a cabo pela ADEIMA e inscreveu-se. Hoje “até mensagens do telemóvel” já consegue enviar. Embora prefira as teclas do computador. “São maiores”, ri-se.   

Para chegar ao nível que ambiciona ainda lhe falta “muito”. Tem dificuldades em passar para o papel os sons com a letra n, quando aparece no meio de uma palavra. “Mais um ano e chego lá”, é a meta que estabelece. Até lá vai lendo em casa as revistas que “dantes não conseguia ler”, principalmente para saber como o dia lhe vai correr. É dada à astrologia: “Gosto de ler o signo”. Os filmes com legendas já consegue acompanhar, embora “a metade”. “Passam as letras muito rápido”, brinca.

As aulas são acompanhadas por uma equipa de dois professores e dois psicólogos que se distribuem e alternam entre os centros do concelho onde as aulas decorrem. É um trabalho coordenado e articulado entre toda a equipa, como explica Pedro Duarte, professor/formador, que no dia da nossa visita estava a leccionar no centro da Brito Capelo. A par do trabalho desempenhado pelos professores, a equipa de psicólogos trabalha em simultâneo na valorização dos alunos, no sentido de lhes devolver a autoestima e de os conduzir pelas alternativas que existem para quem quer voltar ao mercado de trabalho. De acordo com o professor do 1º e 2º ciclo em início de carreira, a maior parte dos formandos são desempregados.

“Os grupos de alunos são muito heterogéneos e têm histórias de vida muito diferentes”, diz. O aluno mais novo tem 19 anos e o mais velho mais de 80.  É por isso que o ensino tem que ser adaptado e personalizado. Na maior parte dos casos, os alunos “já tinham algumas noções básicas de leitura e escrita”, apenas uma pequena parte chegou sem essas competências. Há quem tenha mais dificuldades na leitura, na escrita ou mesmo em cálculos matemáticos. É também função do +Literacia promover o ensino elementar da matemática e de princípios básicos relacionados com o funcionamento das novas tecnologias. De uma forma geral a taxa de sucesso é “quase 100%”. Só quem abandona a meio, “uma pequena fatia”, é que acaba por não tirar proveito do programa.

Como grande parte dos alunos já “tem algumas noções”, porque a dada altura frequentaram o ensino básico, mas não o completaram, ou porque alguém lhes ensinou a escrever algumas palavras, chegam também com “alguns vícios”, diz. Essa é uma das dificuldades que os professores têm, que os obriga a contornar essas “manhas”.

Todo o programa e método foi discutido e desenvolvido entre a equipa técnica, ainda numa fase de concepção do projecto, em Dezembro de 2015. Para acompanhar o que foi definido, escasseiam os materiais. Como o mercado de ensino elementar para adultos é mais pequeno “não existe uma grande oferta de manuais” e os que existem “ou são muito infantis ou muito avançados”, sublinha. Na falta dessa oferta, os materiais usados nas aulas foram criados de raiz pela própria equipa. 

As alunas que estão na aula trabalham com recurso a esses materiais. Há quem faça exercícios de escrita, como é o caso de Albina, ou quem se dedique à matemática, como o faz Graça Santos, com 54 anos. Andou na escola até à terceira classe e já sabia ler e escrever. Está lá porque tem dificuldades na soma e na multiplicação. Pratica ainda “a contar pelos dedos” e mesmo sabendo ler escrever, procura também “melhorar a caligrafia”.

Mais ao lado, Júlia Gomes, 68 anos, já está reformada - uma das poucas excepções de formandos que já não estão em idade activa. Desenha uma casa dentro dos limites de um quadrado de um dos livros de fichas. Tem que desenhar o que se passa na acção descrita num texto. “Não tenho jeito para desenhar”, diz. Na oralidade, o português é irrepreensível. Mais difícil é escrevê-lo. “Estou atrasada 62 anos”, afirma. Mas vai apanhar o comboio que deixou ainda quase na partida, quando “em miúda” deixou a escola sem terminar o ensino básico. “A vida não me deixou estudar”, diz. Inscreveu-se no projecto por iniciativa própria porque “agora” tem tempo: “Nunca é tarde”. Um ano depois já há resultados, já lê e escreve, mas acha que uma das coisas é mais difícil que a outra: “Ler é mais fácil porque as letras já lá estão. Escrever é mais complicado porque sou eu que as tenho que pôr lá”.       

Cinco anos para erradicar a iliteracia na população activa de Matosinhos

De acordo com o vice-presidente da ADEIMA e mentor do +Literacia, José Pedro Rodrigues, há em Matosinhos cerca de 4 mil pessoas analfabetas ou com problemas de literacia, sendo que aproximadamente 500 estão em idade activa. Em Portugal, segundo dados do INE, meio milhão de pessoas são consideradas analfabetas - 30 mil em idade activa.

Este projecto, que custa ao município 90 mil euros, levado a cabo pelo também vereador da Mobilidade, eleito pela CDU, que já confirmou a sua candidatura nas próximas eleições, tem como finalidade, segundo o mesmo, erradicar, em cerca de 5 anos, a iliteracia dentro da população activa do concelho. O +Literacia, a terminar em Abril o primeiro ano de actividade, formou cerca de 100 pessoas, com uma média etária na casa dos 45 e distribuída por género na mesma proporção. Mantendo este ritmo, o projecto, que de acordo com o autarca “é para continuar” nos próximos anos, em meia década será possível erradicar o analfabetismo na população activa.     

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