“O século XXI é a era dos populismos”

Muito antes de o populismo estar na moda e em destaque nos jornais e nas sondagens, já Cas Mudde o estudava. Este cientista político holandês radicado nos Estados Unidos é por isso uma das vozes mais autorizadas para ajudar a entender o actual estado da política.

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Os movimentos populistas cumprem um papel útil ao forçarem o debate sobre questões que as forças maioritárias preferem evitar, diz Cas Mudde Miguel Manso/PÚBLICO

O populismo é uma resposta democrática mas não-liberal à situação corrente, explica Cas Mudde. E essa resposta quer corrigir excessos e falhas da democracia liberal. Para explicar as razões da actual deriva populista, o cientista político holandês parte para o ataque: “A culpa é da social-democacia, que se converteu ao liberalismo e abandonou o papel de alternativa. Esta reorientação à direita dos partidos social-democratas é a principal razão apontada pelos estudos sobre o crescimento do populismo e da direita radical.”

Em Portugal por convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Cas Mudde apresentou o seu livro Populismo, Uma Brevíssima Introdução. Admite que há questões por responder: porque é que a alternativa ao liberalismo foi populista e não marxista? Porque é que a extrema-esquerda que resta tomou opções populistas para se aproximar do poder? “Essa ausência de resposta marxista é muito intrigante, reconheço. Especialmente durante a crise, seria de esperar uma revitalização muito forte da esquerda radical; a que aconteceu foi espelhada apenas em dois partidos, o Syriza e o Podemos. Creio que em parte é porque a maioria dos países não foi assim tão afectada; não estão bem em termos financeiros, mas não estão a passar por uma crise da mesma forma que os países do resgate.”

“O que é formidável”, diz, “é o que se passou nos Estados Unidos. Bernie Sanders, embora não seja da esquerda populista, criticou a estrutura neoliberal e teve uma imensa popularidade falando de desigualdade e justiça social como ninguém na Europa o faz”. 
“É quase irónico que o crítico mais explícito do neoliberalismo seja um político da vanguarda social-democrata de um país que nunca teve um partido social-democrata forte.”

Jeremy Corbyn, no Reino Unido, tenta fazer o mesmo. “Mas de forma atabalhoada. Está a usar ideias dos anos 60 e o mundo é hoje diferente, não se pode fazer exigências impossíveis na estrutura da União Europeia. E é verdade que saíram da UE, mas continuam a estar numa Europa dominada pela UE. Mesmo querendo ser um social-democrata da vanguarda, é necessário recorrer a políticas modernas e Corbyn não demonstrou capacidades nesse campo.”

Época dourada 

E se a social-democracia abriu um caminho, o populismo foi rápido a preenchê-lo. Na Europa continental há Marine Le Pen (França), há Viktor Órban (Hungria), há Geet Wilders (Holanda), há Beppe Grillo (Itália). Não existindo uma coerência ideológica transnacional, há uma coincidência de propósitos.

“A maioria é constituída por grupos populistas da direita radical, que combinam o nativismo, o autoritarismo e o populismo. Todos estes aspectos têm por base a diferenciação entre ‘nós’ e ‘eles’, embora estejamos a falar de coisas diferentes. No nativismo, a distinção é étnica: o 'nosso' grupo étnico contra o grupo étnico 'deles'; no autoritarismo, distinguem-se as pessoas cumpridoras da lei dos criminosos; e no populismo distingue-se o povo da elite corrupta." 

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Cartaz de campanha do referendo para limitar imigração na Suíça Arnd Wiegmann /REUTERS

"É possível criar diversas combinações a partir destes três aspectos. O nativismo e o autoritarismo são frequentemente associados. Por exemplo, o slogan de Geert Wilders é 'mais segurança e menos imigração', ou aquele famoso cartaz racista do Partido Popular Suíço, que ilustrava ovelhas brancas a expulsarem ovelhas negras e o slogan era 'mais segurança'. Da mesma forma, o nacionalismo e o populismo podem ser combinados. A direita radical populista dirá que a elite do seu país está a traí-lo porque confere mais importância a Bruxelas; existe sempre esta distinção, uma visão polarizante."

O problema, diz, "é que o anti-populismo também apresenta uma visão polarizante. Se olharmos para o discurso dos liberais sobre o 'Brexit' ou sobre Donald Trump, vemos uma grande polarização e moralismo.”

A dimensão positiva

Cas Mudde não vê apenas problemas. Quer no livro quer na conferência de Lisboa, defendeu que os movimentos populistas cumprem um papel útil no sentido em que forçam o debate sobre questões que as forças maioritárias preferem evitar, para além de cumprirem a integração de franjas da população que se excluíram do sistema. Mas essa não seria uma função dos partidos tradicionais?

“Claro, mas eles não o fazem. Nos melhores casos, os partidos populistas mostram a capacidade para integrar a população e os partidos tradicionais apropriam-se desse aspecto e tudo fica bem. No entanto, não é a regra. Em parte, isto é uma consequência de termos um número crescente de grupos. A política tornou-se mais complexa e é tridimensional (social e económica, autoritária e liberal, cosmopolita e nacionalista), o que cria novos espaços e identidades diferentes.

É possível navegar por essas identidades, mas não sobrepô-las todas. O que isto significa é que vamos estar mais fragmentados, mais divididos quanto aos partidos. Acredito que seria bom se muitos dos partidos sociais-democratas fossem substituídos por partidos sociais-democratas novos, que não carreguem consigo décadas de problemas. Isto altera os agentes que actuam dentro do sistema. Eu acredito que é o que muitas pessoas desejam: mudança sem que o sistema mude.”

O que fazer

O corolário deste comportamento é o que Cas Mudde defende como reacção ponderada ao populismo, sem exageros, abordando as raízes do problema. Só que essa não tem sido a regra: “Estamos a agir como se o populismo fosse a voz da maioria e tal não é o caso em nenhum país do mundo. É verdade que o populismo está a ganhar força e tem hoje mais força do que alguma vez teve e isso significa que algo não está a correr bem. Das duas uma: ou estamos a fazer algo mal ou então as pessoas têm ideias ou preconceitos sobre a realidade que são problemáticas e então temos de abordar essas ideias."

Por exemplo, diz, "muitas pessoas acreditam que a UE é responsável por muitos regulamentos pelos quais não é – esta crença deve-se a preconceitos nacionalistas que levam a uma desconfiança de organizações supranacionais".

Mas não há um discurso dirigido a essas pessoas. "Limitamo-nos a dizer que são estúpidas e que têm ideias desvairadas", sublinha. "As pessoas que manifestam islamofobia acreditam que 25% da população é muçulmana, o que não é verdade, mas nós não abordamos esse tema. Limitamo-nos a dizer que estamos perante islamofobia, o que é estúpido. Faz-nos falta uma narrativa inspiradora, que seja capaz de promover a democracia liberal pelo que ela traz de bom à sociedade. E faz falta uma narrativa europeia! Vamos ter sempre pequenas minorias que não estão satisfeitas com a situação actual. A democracia não aspira a um consenso absoluto, rege-se pela vontade da maioria. Se um país for governado com base na vontade de 60% ou 70% da população, a democracia está a funcionar bem."

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