O carnaval jamais será vencido

A gente não brinca e festeja porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura, anota o historiador Luíz António Simas.

1. Quem já viu milhares sambando sobre o lixo sabe como carnaval é resistência: mais bonitos, mais altos, mais fortes. Então, no primeiro carnaval pós-impeachment no Brasil, aí estava um lixo que parecia de séculos (e também é), e do Rio de Janeiro à Bahia esse povo ainda não foi vencido.

2. A MINHA HISTÓRIA JÁ FALA POR MIM? / SOU RESISTÊNCIA, ORGULHO SEM FIM / TEM POESIA NO AR, VOCÊ JÁ SABE QUEM SOU / PELO TOQUE DO AGOGÔ, assim terminou o samba-enredo de 2017 da Império Serrano, escola pela qual desfilei, integrando a inesquecível Ala dos Devotos, em 2011 e 2012. Foram anos de luta braba para subir de divisão, voltar ao grupo das campeãs. Este carnaval, com um enredo dedicado ao poeta Manoel de Barros, aconteceu. E não apenas a Serrinha pôde enfim celebrar a sua vitória, como também a da Portela, vizinha lendária lá em Madureira, subúrbio da Zona Norte do Rio de Janeiro. Havia 33 anos que a Portela (escola de Zé Keti, Monarco, Paulinho da Viola e da Velha Guarda), maior campeã no histórico de carnavais, não ganhava um. Quando a Império Serrano conquistou o seu título, a quadra da Portela também vibrou, sambando. Por um instante, Madureira foi a maior alegria do planeta.

3. “Me entristece aturar os tradicionais siricoticos de uma turma de ‘homens de bem’ batendo na tecla de que carnaval é festa de vagabundos alienados, em que as pessoas tiram uns dias do ano para não trabalhar e só se divertir”, escreveu na véspera dos desfiles o grande historiador carioca (de carnaval, samba e religiosidade afro-ameríndia) Luiz Antônio Simas. “Quando escuto isso penso nos vendedores ambulantes, operadores de carro de som, milhares de funcionários dos barracões de escolas de samba, músicos, cantoras e cantores, garis [trabalhadores da recolha de lixo], motoristas de ônibus e condutores de trens e metrô, garçonetes e garçons que aturam os bebuns da folia, entregadores de jornal, jornalistas que ralam nas redacções, funcionárias e funcionários de hotéis, costureiras que fazem as fantasias e em muita gente que rala em outras dezenas de actividades que envolvem os dias de folia. Olhe para o lado: alguém perto de você vai trabalhar com dignidade no carnaval. A gente não brinca e festeja porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura.” E como foi dura neste último ano. Essa alegria não é de principiantes, não. O carnaval será o derradeiro manguito a tudo o que rebaixa. Quanto mais duro, mais bonito.

4. Claro que os bastidores do Sambódromo não deixam de reflectir a política brasileira no seu pior, no sentido da negociata. A ponto de Simas falar em “colapso prático e moral do modelo de gestão privada e pública do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro”. Mas entre folia de rua e desfiles na avenida, carnaval também é “cidadania e participação nos grandes debates”, beleza e gentileza persistem “no meio do temporal”, e este ano talvez tenha sido o mais político de sempre, no sentido da resistência. Teve abre-alas de orixás, alas de índios contra o agronegócio, uma alegoria sobre o maior desastre socio-ambiental da história do Brasil (o que a mineradora Vale causou entre Minas Gerais e Espírito Santo): no enredo vencedor da Portela, que era sobre rios, um dos carros vinha cheio de lama, simbolizando a morte do Rio Doce.

5. Os blocos de rua cariocas, centenas por toda a cidade, durante dias, foram tomados pelo “Fora Temer!”, com marchinhas de “Fora Temer!”, Tom Zé fez até uma canção. Mas não apenas: num momento em que o prefeito do Rio, acabado de eleger, é o bispo Crivella da IURD, os blocos também contrariaram a caretice, a repressão, a homofobia, o machismo. Aliás, Crivella achou melhor sumir de vista durante o Carnaval. “Foi uma grande celebração da rua, de resistência, muitos blocos fora do circuito oficial, todos se encontrando e seguindo pela cidade, livres”, conta o meu amigo Marcio Debellian (que está a trabalhar num documentário com Maria Bethânia a partir do enredo da Mangueira em 2016). “No carnaval passado ainda vivíamos numa democracia”, diz Marcio. “Esse ano foi diferente. O ‘Fora Temer’ esteve em toda a parte nos blocos a que fui.” E no Sambódromo, além da Portela falar do Rio Doce, e do enredo dos índios do Xingu, houve mais liberdade, diz Marcio. “Quanto menos grana de patrocínio, que já levou escolas a fazerem enredo até sobre iogurte, mais se volta a um carnaval político, com enredos criados dentro da própria escola, e não por encomenda. Neste sentido, a crise foi boa, tivemos enredos menos chapa-branca. E no carnaval de rua, muitos blocos fora do circuito da prefeitura, que é patrocinado por uma cervejaria. Todos marcando horário pelas redes e grupos de whatsapp e saindo livres pela cidade. Mulheres de seios de fora, beijos e mais beijos, FORA TEMER em uníssono entoado entre as marchinhas.” Sem esquecer aquele músico da Orquestra Voadora que foi gloriosamente vestido de glitter, e uma meia atada ao sexo com um laço de tigresa.

6. Em Salvador, o “Fora Temer!” chegou ao cimo do trio eléctrico, o tradicional camião de som do carnaval baiano. O vocalista da banda Baiana Systema clamou “machistas, fascistas, não passarão” durante o concerto para o qual foi contratado, e no fim gritou “Fora, Temer!”, com o público fazendo coro. Esteve longe de ser o único a fazê-lo num palco: Caetano Veloso, que actuou de surpresa num concerto de homenagem aos 50 anos do Tropicalismo, em pleno Largo do Pelourinho, centro histórico da cidade, terminou a sua participação com um “Fora Temer!”

7. Entrei em 2017 nas areias da Bahia; no começo de Janeiro fui ao ensaio de carnaval do Cortejo Afro; cruzei-me com os Filhos de Gandhi na procissão da Lavagem do Bonfim. Então, a estar em algum lugar do Brasil neste Carnaval de 2017 (que segui a partir do Inverno português) seria difícil escolher entre Madureira e Salvador. Se o Cortejo Afro é um bloco de carnaval recente, os Filhos de Gandhi são uma lenda com décadas, desde que um estivador negro teve a ideia de enrolar uma toalha na cabeça, um lençol no corpo, e fazer o carnaval ainda assim, sem dinheiro para fantasia. Este ano, o Cortejo Afro homenageou Gilberto Gil, que depois de marcar a história da música como artista, repensou a política cultural como ministro, com raízes que até hoje fazem diferença no Brasil. O seu braço direito e sucessor, Juca Ferreira, era ministro da Cultura em 2016 e caiu com o impeachment. Gil atravessou esse ano doente, além de tudo o mais. Mas agora, no carnaval, cantou do alto do trio eléctrico com o Cortejo Afro. E esteve também com os Filhos de Gandhi, a quem nos anos 1970 dedicou uma canção fabulosa em parceria com Jorge Ben, invocando quadra a quadra os orixás do candomblé, esses deuses que gostam de beleza (diria Luiz Antônio Simas, e qualquer ida a um terreiro o comprova). Vestido de branco e azul como todos, contas brancas e azuis traçadas no tronco, turbante na cabeça, Gil ainda tocou agogô, no meio da bateria do bloco. Homenageando a diáspora africana, o lema dos Filhos de Gandhi em 2017 era: “A travessia não me abateu, tornou-me forte.” É tempo de valentes.

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