“Haverá uma ‘geringonça’ para o jornalismo”

É uma das maiores retrospectivas da obra fotográfica de Alfredo Cunha. No Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa, estão representados 47 anos de trabalho de um fotógrafo irrequieto. Estão lá as imagens “clássicas”, mas há sobretudo fotografias do século XXI.

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Bolama, Guiné-Bissau, 2014 Alfredo Cunha
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Marcelo Rebelo de Sousa, 2016 Alfredo Cunha
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Paredes de Coura, 2014 Alfredo Cunha
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Braga, 2016 Alfredo Cunha
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Vicente Jorge Silva, 1998 Alfredo Cunha
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Vila Verde, 2014 Alfredo Cunha
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Sri Lanka, 2014 Alfredo Cunha
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Bolama, Guiné-Bissau, 2014 Alfredo Cunha
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Mário Soares, 1986 Alfredo Cunha
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Guiné-Bissau, 2015 Alfredo Cunha
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Nassíria, Iraque, 2003 Alfredo Cunha
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Moçambique, 1993 Alfredo Cunha
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Alfredo Cunha

Não é preciso estar muito tempo com Alfredo Cunha para se perceber que continuará a olhar para o que o rodeia até não poder mais, um pouco como o mexicano Manuel Álvarez Bravo que fotografou até aos 100 anos e que, quando já tinha muitas dificuldades em se deslocar, limitado por uma cadeira de rodas, começou a fotografar os próprios pés e modelos nuas no estúdio (“Não é o tipo de trabalho de que alguém se possa queixar”). Depois de acompanhar Alfredo Cunha (Celorico da Beira, 1953) e de o ouvir falar no meio de uma exposição retrospectiva com cerca de meio milhar de imagens, resultado de 47 anos de trabalho, a ideia que fica é a de que nunca se contenta com as fotografias que já tirou, e a certeza de que já está à procura da próxima, da outra e daquela que virá a seguir a essa. Um impulso um tanto obsessivo, não só à procura de se superar, mas também (e sobretudo) à procura de nos informar, de nos deixar um testemunho, de nos surpreender, de nos emocionar e de dar o seu contributo para que possamos compreender-nos melhor. Olhar para as imagens que estão nas paredes da Cordoaria, em Lisboa (até 25 de Abril), é olhar para muitos pedaços de história do país e do mundo, mas também para fragmentos de tempo mais escondidos, que podem ser insignificantes para todos, menos para quem os registou.

E quando se imagina que Alfredo Cunha já está cansado, ele responde com mais livros, com mais exposições, com mais projectos, com mais viagens ao arquivo que ainda está por descobrir. Este ano tem mais dois livros no prelo, um resulta das inúmeras vezes que esteve em Fátima e outro dos 12 anos que passou com Mário Soares.

Não é fácil ver Alfredo Cunha “desarmado”, sem câmara fotográfica a tiracolo, com receio de “perder alguma coisa”. É a réstia de jornalismo de que não se consegue separar, mesmo que o jornalismo já se tenha separado dele. Em 2012, abandonou a carreira de jornalista para se dedicar a outros trabalhos, como os que envolvem ONG´s.

Conversa numa salinha nos bastidores do Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, no meio de pilhas de caixotes com livros de fotografia da sua autoria.

Está a três anos de comemorar 50 anos de carreira. Não faria mais sentido fazer esta retrospectiva nessa altura? Das duas uma, ou não gosta de datas redondas ou vai fazer outra retrospectiva daqui a três anos…
Daqui a três anos vou fazer um livro que se baseará nas imagens e nos textos dos outros meus livros. Vou fazer uma coisa mais minimal. Terá 50 fotografias e cada imagem será acompanhada de um texto. Muitos já estão feitos, outros serão pedidos a várias pessoas.

Procurará aquelas 50 fotografias que ficarão a representar o seu trabalho, é isso?
Sim. [A escolha] vai fazer com que me doa a alma, será como se me cortassem braços… Mas vai ter de ser. Quando toda a gente disser “lá vem aquele chato com uma exposição de 500 fotografias” eu apresentarei um livro de apenas 50 imagens.

Que princípios vão reger essa escolha?
O princípio geral é o da qualidade. Mas sei que isto é vago. Procurarei qualidade técnica, estética ou criativa e a qualidade da fotografia como documento. Há imagens incontornáveis, como a dos caixotes dos retornados, por exemplo. Mas para além destas qualidades queria somar outra, a ética. Quero que estas imagens sejam acompanhadas de uma âncora informativa muito grande, e também de teorização para que o meu trabalho possa ser melhor compreendido.

Mas sente que o seu trabalho não tem sido compreendido?
Sinto. Não quero dizer que sou totalmente incompreendido. Mas se fosse compreendido ainda estava a trabalhar nos jornais. Quando saí [em 2012], senti que ainda tinha capacidade para ficar entre dez a quinze anos. E como se provou, estou fora dos jornais há cinco anos e não tenho parado de trabalhar.

Costuma dizer que os jornais saíram de si, mas que não saiu dos jornais…
Melhor, eu saí do jornalismo mas o jornalismo não saiu de mim. E como não saiu, tenho de fotografar. Cheguei a uma situação quase ridícula, um ponto em que já não me interessa tanto publicar, mas sim fotografar. Tenho de fotografar, se publico ou não já me é um pouco indiferente. E tenho de aceitar que os jornais já não estão interessados na minha fotografia.

Sente-se um repórter ultrapassado, da velha guarda?
Não.

Então o que pensa que pode justificar esta situação?
Pode ser uma questão de geração. Já tenho 64 anos. Também nunca fui um fotógrafo barato. Quando saí dos jornais fui substituído por alguém que ganhava menos quatro vezes. Penso que essa é uma das principais razões. Não creio que seja por falta de qualidade ou por estar desactualizado. Antigamente, os patrões dos media pensavam que para vender tinham de ter o melhor. Agora não, o dinheiro é para automóveis, para telemóveis, para despesas de representação, não é para pagar informação. Ainda não há máquinas para fazer jornalismo, é a massa cinzenta que o faz. Estou esperançado que a situação mude. Nós, jornalistas, temos a obrigação de fazer projectos rentáveis e alternativos ao establishment.

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Bucareste, Roménia, 1999 Alfredo Cunha

No ano passado organizou uma retrospectiva na Maia. Que diferenças há em relação a essa exposição?
A exposição na Maia foi o embrião desta. Completei vários núcleos, como o do 25 de Abril, que na Maia tinha apenas 3 fotografias e aqui tem quase 20. O mesmo se passou em relação aos retratos que tinha 40 e aqui tem 160. Introduzi um projecto novo, feito com a AMI, Toda a Esperança do Mundo, e aumentei fotografias em várias reportagens como a da Guiné-Bissau. Descobri muitas fotografias que resolvi agora imprimir. Essa exposição na Maia dará origem a um espólio de fotografia a criar na Câmara da Maia, um espaço onde serão feitas exposições e onde será organizado um arquivo de jovens fotógrafos.

Há um núcleo de imagens que apresenta regularmente de cada vez que faz uma exposição ou um livro. Não sente vontade de se desapegar delas?
Sim. E esta exposição é também isso. A maior parte das imagens desta retrospectiva são do século XXI. No livro dos 50 anos que vou preparar haverá umas 3 fotografias dos anos 70.

É um fotógrafo organizado?
Muito. Quando tenho um projecto levanto-me cedo, marco um horário para trabalhar, estabeleço objectivos. Tenho de me autodisciplinar porque a minha vida é um bocado caótica.

Controla bem a sua obra ou ainda tem surpresas?
Tenho surpresas. Antes, achava que a controlava, mas agora não. Estou a fazer um livro sobre o Mário Soares e encontro imagens surpreendentes, fotografias de que não me lembrava. Ainda agora a rever trabalho para esta retrospectiva encontrei três imagens da Guiné-Bissau. Estas descobertas, encontrar coisas que valem a pena, fazem-me ganhar o dia. Podem não ser importantes para mais ninguém, mas para mim são.

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Salgueiro Maia, 25 de Abril Alfredo Cunha

Há fotógrafos que ficam reféns de uma imagem e têm dificuldade de mostrar trabalho para além dela. Sente-se prisioneiro do retrato que tirou ao capitão Salgueiro Maia, no dia 25 de Abril de 1974?
Já me senti. E o culpado disso é o Vicente [Jorge Silva, fundador e ex-director do PÚBLICO]. Essa fotografia esteve escondida uns vinte anos. Até que o Vicente a descobriu e fez um editorial sobre ela. O jornal publicou essa imagem nos 20 anos do 25 de Abril e, a partir daí, nunca mais parou. Essa fotografia já tinha circulado logo depois da Revolução, mas, passados uns cinco anos, foi esquecida. Até esse texto do Vicente, que criou um mito. Hoje, já não me importo com isso, porque as pessoas sabem que tenho mais trabalho para além dessa imagem. Mas houve uma altura que parecia que não tinha mais do que duas imagens, essa e a dos contentores [chegada de haveres dos retornados no Padrão dos Descobrimentos].

A descolonização foi a sua primeira grande reportagem?
Sim. É primeira reportagem que penso de forma estruturada. O 25 de Abril foi um grande furo jornalístico, uma reacção imediata, é preciso ir…

E qual foi a reportagem que mais o marcou?
Foi a reportagem que fiz para o PÚBLICO na Roménia, “Os órfãos de Ceaucescu”, com o Luís Pedro Nunes. Atrevo-me a dizer que é um belíssimo trabalho. O Luís Pedro ganhou o prémio Gazeta Revelação em 1991. O PÚBLICO ganhou prémios e eu também. Nessa reportagem tivemos um acidente de carro violento, fiquei muito ferido. Nessa reportagem conhecemos uma médica da AMI que estava na Roménia que estava a tratar de crianças no hospital. Esse acidente é no regresso da reportagem. Quando os médicos da AMI souberam do desastre foram ter connosco e o único que estava muito ferido era eu. Essa médica apareceu. E quando cheguei a Portugal também foi ver como estava. Acabamos por casar. A minha vida mudou por causa desse acidente e dessa reportagem. Também fiquei ligado para sempre ao Luís Pedro. Somos muito amigos. Chegamos a um ponto da vida em que os amigos se contam pelos dedos das mãos.

Gosta de cultivar amizades?
Gosto muito.

Os fotógrafos são normalmente seres solitários, por causa da natureza do seu trabalho.
Eu vivo numa quinta. A minha casa no Verão é um viveiro de fotógrafos que estão sempre a dizer mal dos que não estão lá. 

É um repórter fotográfico que gosta de andar acompanhado da palavra. Como tem sido essa experiência?
Gosto de duplas. Interfiro nas reportagens dos outros e gosto que os outros interfiram nas minhas. Isso permite-nos compreender o que o outro anda à procura, aquilo a que está mais atento, o que quer. Ficava furioso como editor quando alguém dizia que não falava com este ou com aquele jornalista. Uma fotografia sozinha às vezes vale zero, tem que ser contextualizada com a palavra. No fotojornalismo, o trabalho não pode ser estanque, tem que comunicar com a palavra. Se isso não acontecer, não há uma reportagem, mas duas reportagens de uma equipa. Uma será sobre alhos e outra sobre bugalhos.

E como vê o fotojornalismo hoje?
Acho que o fotojornalismo pode ser a salvação dos jornais.

Porquê?
Porque a ânsia pela imagem é muito forte. E a merda de imagens que se estão a publicar hoje nos jornais também é muito forte. Logo, os jornais estão a afastar-se dos seus consumidores, dessa comunicação, dessa química.

Mas acha que há bom fotojornalismo e que há condições para o fazer?
Condições não há, mas há muitos e bons fotojornalistas. E há também muitos a desistir.

Teme que a maneira de fazer fotojornalismo como até hoje vem sendo feito possa estar perto do fim?
Em Portugal, já aconteceu uma crise semelhante a esta, quando o PÚBLICO surgiu no princípio dos anos 1990. A imprensa estava mergulhada numa crise, com vários jornais a fechar, como o Diário de Lisboa, o Diário Popular. Até que surgiu o PÚBLICO e puxou tudo para cima.

Acredita que surgirá agora algo semelhante?
Acredito. O fim da História vaticinado pelo Pedro Passos Coelho, o cenário em que seríamos todos escravos, afinal não se concretizou. [Na política,] a “geringonça” funciona. Acredito que haverá também uma "geringonça" para o jornalismo.

São Tomé e Príncipe, 1975 © Alfredo Cunha
Salgueiro Maia, 25 de Abril de 1974 © Alfredo Cunha
Descolonização © Alfredo Cunha
Lisboa, 25 de Abril de 1974 © Alfredo Cunha
Lisboa, 25 de Abril de 1974 © Alfredo Cunha
Vila Franca de Xira, 1975 © Alfredo Cunha
Pinhão, Douro, 1997 © Alfredo Cunha
Vila Verde, 1999 © Alfredo Cunha
Porto, 1999 © Alfredo Cunha
Bucareste, Roménia, 1999 © Alfredo Cunha
Níger, 2014 © Alfredo Cunha
Níger, 2014 © Alfredo Cunha
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São Tomé e Príncipe, 1975 © Alfredo Cunha
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