O bom senso é o melhor instrumento para saber quando nos enganam

Há mentirosos que acham que têm um direito superior a mentir, que vem da sua condição social ou profissional, e depois voltam à base com a maior naturalidade, elogiados pelos “enormes serviços à pátria”,

Sempre achei que o bom senso era um guia muito seguro para analisar os negócios públicos e nunca me dei mal com isso. Não vou fazer aqui a lista habitual dos comentadores de que “como eu disse” verificou-se isto e aquilo, mas vou dar alguns exemplos de como o bom senso é muito mais “revelador” do que teorias mais ou menos sofisticadas, ou a sugestão de que se sabe algumas coisas, porque se está próximo do poder e se lhe oferecem as orelhas para depois se usar a boca.

O bom senso não prova nada, visto que há suficiente número de pessoas insensatas para dar uma dose de imprevisibilidade e irracionalidade aos negócios públicos, e o “ruído do mundo” é grande, mas ajuda a evitar quer o “hoje é preto e amanhã é branco” da cobertura mediática, sempre à procura de novidade onde ela não existe, quer que se engulam mentiras ou versões sugestivas de mentiras ou omissões da verdade com a facilidade com que muita gente o faz. Aliás, na maioria dos casos, não porque acreditem, mas porque lhes convém ao seu clubismo político e acham que insistindo nessas versões obrigam os outros a abandonar o bom senso e a aceitar “factos alternativos”, ou seja, falsidades.

Penso também que o bom senso torna-me muito pouco conspirativo. Tenho de há muito a tese de que a explicação mais simples é, por norma, a mais verdadeira e que em Portugal não há por regra, quase sem excepções, nenhuma conspiração digna desse nome. Nem as pessoas têm a sofisticação na sua acção política para fazer uma conspiração como deve ser, que implica meios e recursos, criatividade e imaginação que não abunda, como, sendo Portugal o que é, alguém acaba sempre por falar de mais. Pode haver coisas escondidas, e isso há muito, mas conspirações como interpretação para certos factos ou eventos é por regra menos provável do que uma explicação mais simples.

Quando, há muitos anos, escrevi o que escrevi sobre o fim da idade de inocência na Internet ainda muito dominada pelos blogues de que se começava a notar uma crescente manipulação com várias origens, houve quem gritasse “conspirativite” e rasgasse as vestes de indignação. Aliás, hoje continuam a rasgar as mesmas vestes, como se elas há muito não estivessem já em farrapos. Mas agora já se sabe, quer por testemunhos directos de quem participou nessas manipulações, quer por documentação, o que fizeram algumas agências de comunicação e gente ligada ao “passismo” ascendente contra Manuela Ferreira Leite e Paulo Rangel, de forma concertada e escondida, como se conhece a fabulosa história do “Abrantes” anónimo da Câmara Corporativa, hoje suspeito num inquérito judicial de ser avençado por Sócrates. Vão ver o que então escrevi e está tudo certo, até porque de há muito sou a favor de que deve haver fact-checking do que se diz para o espaço público e que a melhor prova do valor de um comentário é ter sentido muito tempo depois das circunstâncias que o originaram.

Mas, para dizer o que disse então, não era preciso ser conspirativo para perceber que havia coisas que não ligavam entre si: quando uma acção não é concertada, parece sempre mais caótica e contraditória, menos regular e sistemática, assim como o uso de pseudónimos e de anonimato por regra, quando nada justificava que as opiniões fossem anónimas, e o evidente profissionalismo de blogues como a Câmara Corporativa (que infelizmente deixou descendentes) não podia resultar apenas de uma iniciativa espontânea de meia dúzia de amigos do Governo do engenheiro. Hoje sabe-se como foi, e ainda se saberá mais no futuro. Mas para perceber o que se passava, insisto, uma tese conspirativa dizia-nos pouco, bastava usar o bom senso para se concluir de que ali havia mão invisível que o tempo tornaria, como tornou, visível.

Este intróito já vai longo, mas serve para se perceber que o vulgar bom senso nos permite compreender tudo sobre o que se passou com Centeno e Domingues — ou seja, como era evidente, houve tentativas de parte do Governo para dar a Domingues o que ele queria e depois falhou o processo de negociações, porque se verificou que era inaceitável pelo tribunal, pelos partidos da “geringonça” e pelos da oposição, e teve de haver um recuo. O que é que falta saber? Alguns detalhes e pormenores, mas a arma fumegante já está à vista de todos. Domingues quer vingança, que é uma manifestação a mais da sua arrogância ofendida? Quer. Centeno anda ali para trás e para a frente, a ter de tornear uma verdade que se tivesse assumido desde início não teria nenhum efeito especial. Não tem muito jeito para ser piranha no meio dos tubarões — eu sei que só nos filmes de ficção estes se misturam — e se a estes lhes cheira a sangue perseguem o pobre peixe por tudo quanto é recife.

Agora, isto é peanuts, desculpem o estrangeirismo, comparado com a questão dos offshores, em si incomparável de gravidade. E, de novo, usando apenas o bom senso, percebe-se aquilo que é a primeira cortina de fumo de mentiras ditas por Paulo Núncio. Haverá outras a caminho, mas esta primeira é muito significativa, porque se desdobra em dois momentos. No comunicado que fez em Fevereiro, percebe-se que Paulo Núncio quer acima de tudo salvar a sua pele e atirar as culpas para a administração fiscal: ele não tinha nada que ver com o assunto, a Autoridade Tributária é que não tinha cumprido as suas obrigações de preparar e publicar as estatísticas em falta. É um retrato de carácter.

Depois, veio a segunda versão, e aqui já não é só a sua pele que quer salvar, mas a dos seus, até porque sabe — como muita gente que faz parte do círculo de poder fáctico que manda em Portugal — que ninguém lhe perdoaria a falta de lealdade. No fundo, o que é que lhe custou? Uns lugarzitos sem relevância num pequeno partido, custo ínfimo para manter tudo o resto, o resto que importava antes e que importa depois. Para Paulo Núncio, uma semana depois, na segunda versão, afinal já não havia nenhuma obrigação de publicar aquelas estatísticas, e justificou mantê-las em segredo “para não prejudicar a luta contra a evasão fiscal”. No intervalo, entre uma e outra soube-se que a administração fiscal lhe tinha por duas vezes proposto a publicação, e ele fora apanhado a mentir. Porém, a segunda versão é igualmente absurda, e de novo chamo o bom senso à colação: por que razão é que publicar a estatística dos dinheiros que iam para os offshores punha em causa a luta contra a evasão fiscal? Mais uma vez estes homens tratam-nos por parvos. O que punha em causa era outras coisas, como, por exemplo, as afirmações do que tinha feito no passado e no presente, de que sob a sua administração fiscal o dinheiro que ia para offshores tinha diminuído, quando tinha aumentado. Ou a revelação incómoda para o Governo da troika e da austeridade de que estava a sair muito dinheiro para paraísos fiscais, na legalidade, claro.

Depois veio aquilo que hoje se sabe ao certo: as transferências no pequeníssimo valor de dez mil milhões de euros não só estavam omissas das estatísticas, como não tinham sido sujeitas ao controlo devido pelas finanças, e muitas tinham ido parar a um paraíso fiscal, o Panamá, considerado na “lista negra”. Legalmente, claro, presume-se, diz o batalhão de amigos dos offshores que hoje pululam numa direita radicalizada e que, se são os “seus” que estão na mira, justifica tudo.

Vamos ver, há um inquérito em curso, mas só vamos ver porque se descobriu que os dez mil milhões de euros faltavam na estatística, sendo que esta pequeníssima quantia escapou à atenção de sábios em finanças e fiscalidade, como o secretário de Estado e os ministros da pasta. Já nem sequer vale a pena acrescentar que o bom senso nos impede de acreditar que no topo, de Passos Coelho, passando pelos ministros das Finanças e da Economia e pela troika, ninguém quisesse saber quanto dinheiro estava a sair para offshores e lhes fosse indiferente o volume das transferências em período de crise. Mais uma vez, querem tomar-nos por parvos.

Há um tipo de mentira que me irrita, é aquela que é dita com a completa sensação de impunidade de quem a usa e com completo desprezo pela inteligência alheia. É caso dos mentirosos que acham que têm um direito superior a mentir, que vem da sua condição social ou profissional, e depois voltam à base com a maior naturalidade, elogiados pelos “enormes serviços à pátria”, à função de conselheiros dos poderosos, como se mentir não fosse óbice para coisa nenhuma. Mas é mesmo assim.

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