Governar para os ricos

O Estado que não pôde cruzar estes dados é o mesmo que, confirmadas as crises bancárias, achou-se na obrigação de injetar nos bancos o mesmo dinheiro que deixou escapar, pedindo-o sob a forma de impostos sobre o rendimento e o consumo ao mexilhão.

Um oceano de dinheiro transferido para offshores, esses "paraísos fiscais" (há quem lhes chame "bordéis tributários") onde os mais ricos escondem riquezas que seriam capazes de resolver os problemas sociais e ambientais que eles mesmos (ou quem por eles organiza visões convenientes do mundo) costumam descrever como impossíveis de resolver por falta de recursos. A discussão sobre esta monumental batota, num país que viu os mais fanáticos liberais querer resolver com aquele "enorme aumento de impostos" de Vítor Gaspar a crise da dívida-privada-transformada-em-pública, entrou no debate público na primavera de 2016 com a escandaleira dos Papéis do Panamá e volta agora, com um significado político acrescido, com os detalhes da gestão fiscal da direita pela mão de Paulo Núncio e dos dois ministros que o tutelaram, Gaspar e Maria Luís Albuquerque.

Assente a poeira - não toda: falta saber quanto terá fugido aos impostos -, o que fica é o mais despudorado comportamento contra a transparência que um governante pode assumir nesta área: Núncio (advogado fiscalista numa das maiores firmas europeias especializadas em fiscalidade "criativa") impediu a publicação dos dados das transferências que os bancos portugueses fizeram em 2011-14 para offshores, incumprindo normas portuguesas e uma diretiva comunitária de 2005.

Sabe-se agora que, entre 2011 e 2015 terão saído de Portugal 25.850 milhões de euros - ou seja, cerca de 2,5% de toda a riqueza produzida nesses anos, valor próximo do défice público, para o qual contribui decisivamente a impunidade com que o capital português foge ao fisco e deixa o Estado descalço, para depois o acusar de incompetência na oferta de serviços dignos à população. O atual governo preferiu não divulgar quais os bancos de onde sai(u) esta enormidade de dinheiro, seguindo o conselho legal do Banco de Portugal, outro dos atores de todo este processo com pesadíssimas responsabilidades na indignidade em que caímos nos últimos anos.

Mas a suspeita fica de que grande parte deste dinheiro terá saído dos bancos que entraram em rutura (sobretudo o BES), determinando essa mesma rutura. Que hoje saibamos que, de todas as transferências para o Panamá no ano em que o BES foi ao fundo (2014), 98% tenha aparecido no que se escondeu diz muito do que terá acontecido. Consequência? O Estado que não pôde cruzar estes dados é o mesmo que, confirmadas as crises bancárias, achou-se na obrigação de injetar nos bancos o mesmo dinheiro que deixou escapar, pedindo-o sob a forma de impostos sobre o rendimento e o consumo ao mexilhão que não usa nem saberia como usar os tais offshores...

Podemos ter uma ideia de quanto escapa ao fisco, nem que seja comparando, como propõe o economista Eugénio Rosa, "os impostos pagos em Portugal e os que deviam ser pagos atendendo ao nível de desenvolvimento em comparação com os 28 países da União Europeia". Para os anos de 2011-15, a estimativa por baixo é de mais de 33.6 mil milhões de euros, o que inclui uma grande parte daqueles 26 mil milhões transferidos para offshores que deveriam ter sido tributados.

Tudo isto ocorreu sob o mesmo governo que, em nome do "saneamento" das contas públicas, agravou a injustiça fiscal de forma arrepiante: entre 2010 e 2014, quem declarava nos dois escalões mais baixos de rendimento (até 10 mil euros por ano) viu aumentar o IRS pago em 190% e 136%, respectivamente, enquanto os dos escalões mais altos (mais de 100 mil euros) pagaram mais 15,4% e 12,7%. Por outras palavras, "o aumento enorme do IRS imposto aos portugueses pelo governo PSD/CDS determinou uma subida do IRS por agregado que é tanto maior quanto menor é o rendimento bruto" (Eugénio Rosa, 28.9 e 10.9.2016).

Os que dizem que trazem para Portugal "a peste populista" (J.M.Fernandes, Observador, 2.3.2017) aqueles que explicam como tudo isto é governar para os ricos, querem chantagear-nos a todos, acusando-nos de sermos nós a levar ao poder os bilionários (Berlusconi, Trump) e os racistas. A democracia escoa-se, isso sim, nestes offshores, nesta impunidade organizada pelo governo dos Núncios, tão louvado por eles.

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