Marine Le Pen à boleia de François Fillon

A radicalização isolou o candidato da direita e poderá favorecer a extrema-direita.

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1. Apenas faltava que Alain Juppé se candidatasse para, uma vez mais, virar do avesso as presidenciais francesas. Mas, para isso — o chamado “plano B” da direita —, é preciso que François Fillon desista. Ao longo da semana, Fillon jurou que não se rendia. Com a sua equipa de campanha e os apoiantes a desertarem, dificilmente resistirá à pressão. Aguardemos.

O que conta é que, para seu “audível”, Fillon endureceu o tom, fez uma viragem à direita e aproximou-se do estilo e dos temas de Marine Le Pen. Podemos especular: a radicalização de Fillon poderá favorecer Le Pen, tanto na primeira volta (23 de Abril) como, sobretudo, na segunda. 
Esta eleição desenrola-se em circunstâncias inéditas ou excepcionais, provocadas pelo enfraquecimento dos grandes partidos de esquerda e de direita (“Que eleições são estas?”, PÚBLICO de 2 de Março). Neste quadro, surpresas e viragens são a regra.

2. Marine Le Pen radicalizou a campanha e lançou um virulento ataque contra a magistratura, os media e os funcionários. A braços com problemas de justiça, preveniu os magistrados: “A justiça é uma autoridade, não é um poder; os magistrados existem para aplicar a lei, não para a inventar ou contrariar a vontade do povo.” Acusa os “funcionários” de estarem às ordens do “pessoal político que os utiliza para vigiar os opositores e organizar a sua perseguição (...) ou cabalas de Estado”.

Também a braços com o risco de ser constituído arguido no caso “Penelopegate”, Fillon denuncia uma conspiração para lhe fazer barragem, metendo no mesmo saco os media, os juízes e a esquerda. Tal como Le Pen, Fillon lançou-se numa prova de força com o sistema judiciário em nome da legitimação pelas urnas. 

3. Fillon passou a colocar-se num plano anti-sistema: “Estou aqui para anular os cenários que outros quereriam escrever nas vossas costas.” Apresenta-se nos comícios como o “combatente” por uma “França livre”. Anota o Le Monde: “Só contra todos”, aposta em aquecer as tropas até à histeria para manter a base eleitoral, sob risco de ver fugir os segmentos moderados. Não é por acaso que passou a destacar os temas mais à direita do seu programa, da “segurança” aos “valores da família”.

“Fillon aposta na cólera surda do povo de direita”, a quem explica que a sua vitória sobre o “hollandismo” está a ser usurpada pela esquerda, juízes e media, sublinha o politólogo Jérôme Fourquet, director do departamento de opinião do instituto IFOP.

A radicalização de Fillon deu lugar a analogias com o populismo de Berlusconi ou Trump. O historiador Pierre Rosanvallon tocou no ponto nevrálgico: “Com três dias de distância, o candidato da direita tradicional usou os argumentos de Marine Le Pen, que fustigou o ‘governo dos juízes’ e o papel nocivo dos media. François Fillon afirma que o único juiz é o povo. (...) É um discurso que hoje se ouve pelo mundo fora, na Turquia, na Rússia, nos Estados Unidos.”

4. Juppé recusa, logicamente, entrar na corrida eleitoral se Fillon não se retirar. Uma sondagem de sexta-feira indicava que, caso se candidate, Juppé poderia passar para o primeiro lugar nas sondagens, seguido de Marine Le Pen e Emmanuel Macron. Não é o que aqui nos interessa. Importa outra pergunta: para onde passará a franja mais conservadora da base de Fillon? No actual clima político, a transferência não é automática. Passarão todos os votos de Fillon para o “moderado” Juppé ou muitos irão para Le Pen, como efeito da “cólera surda do povo de direita”?

Fourquet cita um estudo do IFOP que indica que a campanha de Le Pen conserva uma dinâmica forte que poderá consolidar-se, e até alargar-se, na primeira volta. E, sobretudo, na segunda, em que conta captar 30% do eleitorado de Fillon e talvez 10% dos votos de Mélenchon numa eventual disputa contra Macron. Deverá atingir o patamar dos 37%. Ou mais.

Le Pen e Macron designaram-se mutuamente como “adversário principal”. O terreno de afrontamento, sublinha Fourquet, não assenta na clivagem esquerda/direita mas noutro terreno. Para Macron, é um duelo “progressistas contra conservadores”; para Le Pen, é um confronto entre “patriotas e globalistas”. A separação das águas passaria pela clivagem entre “soberanistas” e “adeptos da sociedade aberta e globalizada”.

Que mudaria com a entrada em cena de Juppé? É cedo para o perceber. Apenas se pode especular que Le Pen terá a perspectiva de atrair a franja radical dos eleitores de Fillon, enquanto Juppé poderá recuperar uma grande parte do voto centrista em Macron. E este precisará de consolidar o voto socialista. 

5. A Frente Nacional (FN) pensa desde já nas legislativas de Junho, que podem mudar o quadro parlamentar da V República e a própria lógica do sistema político.

Partindo da expansão da FN nas eleições regionais de 2015, vários institutos admitem que a extrema-direita possa conquistar entre 40 e 80 mandatos na Assembleia Nacional. Até agora, o caminho tem estado barrado à FN pela impossibilidade de fazer acordos de desistência na segunda volta. Este pacto “republicano” está a desfazer-se. O famoso “tecto de vidro”, que limita o poder institucional da FN, não desapareceu, mas pode sofrer um “rombo” nas legislativas.

Os estudos calculam que poderá haver numerosos duelos entre esquerda e FN, em que o voto da direita será incerto, e um aumento de votações triangulares de desfecho imprevisível. Quer isto dizer que a FN, com 25% do eleitorado, passará a ser uma força parlamentar. E mais ainda se a próxima legislatura decidir criar um sistema misto, com maior proporcionalidade. 

6. A FN nunca escondeu o seu desígnio de provocar uma ruptura dentro da “direita tradicional”, atrair uma parte do seu eleitorado para criar uma “direita nacional ou patriota” sob sua hegemonia que disputaria o poder com a esquerda, entrando na “área do poder” de que está historicamente excluída.

Pode ser uma perspectiva ainda longínqua, mas as presidenciais são um momento importante desta batalha. Um dos mais relevantes dados desta eleição é o risco de autofractura de Os Republicanos, o partido de Filllon, Sarkozy e Juppé.
É algo que pode reconfigurar o sistema político francês. Mas as presidenciais continuam a ser as eleições decisivas, aquelas que marcarão a orientação política da França nos próximos anos.

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