A “velha economia” sobreviveu e está em estado de graça

No princípio da era europeia, o calçado, a têxtil, a cortiça e a agricultura eram patinhos feios. Sectores arcaicos, diziam. Inviáveis, notavam. Condenados, garantiam. Ninguém acreditava que os empresários das anedotas com amantes e carros de luxo dessem a volta à globalização e ao euro. Deram.

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Panos de tecido duvidoso, t-shirts baratas ou toalhas de mesa com quadrados azuis banais num tecido rudimentar; sapatos broncos, sem design, feitos à mão como em tempos remotos; rolhas produzidas em ambientes industriais descuidados e propícios à contaminação de TCA (composto que estraga o vinho com o horrível cheiro a rolha); campos agrícolas ao abandono, cheios de silvas, ou lavrados apenas para aproveitarem os subsídios europeus. Há 20 ou 30 anos, uma boa parte dos responsáveis políticos ou da banca olhava para a indústria têxtil, para a do calçado, para a fileira da cortiça ou para a agricultura, encolhia os ombros e emitia uma certidão de óbito. Eram indústrias ou actividades do passado, dizia-se; tinham por base a mão-de-obra barata que haveria de desaparecer com a modernização do país, previa-se; novos vedantes feitos de plástico ou alumínio vão enterrar a cortiça, augurava-se; Portugal é um país de solos pobres e de agricultores impreparados ou, no máximo, apenas preocupados com os subsídios, sentenciava-se.

Se o país olha hoje com manifesto orgulho para o calçado, para a têxtil, para a indústria da cortiça ou para algumas das principais fileiras produtivas da agricultura, não é apenas porque as previsões sobre o seu futuro se manifestaram erradas; é também porque se reconhece nos seus empresários, nos seus trabalhadores ou nas suas associações empresariais uma capacidade de resistência e de adaptação que surpreendeu tudo e todos.

Os custos foram enormes. Hoje, a agricultura vale menos de 2% do PIB (a riqueza nacional produzida num ano), contra cerca de 8% no ano da integração europeia, em 1986; a poderosa indústria têxtil só este ano voltou a aproximar-se do recorde das exportações registado em 2001, 5000 milhões de euros; depois de uma década de apuros, a cortiça recuperou as exportações acima dos 900 milhões. Caso à parte, o calçado tornou-se a estrela da economia nacional ao aumentar as suas vendas para o exterior em 34% depois de 2010.

A tormenta

O que se passou na indústria pode ser comparado aos processos de destruição criativa propostos pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950). Para se adaptarem às exigências da moeda única, à liberalização do comércio mundial que abriu as fronteiras europeias a potências como a China ou ao aumento dos custos salariais, as chamadas “indústrias tradicionais” e a agricultura tiveram de enterrar milhares de empresas e de extinguir dezenas de milhares de postos de trabalho. Foi um processo doloroso, que demorou 30 anos. Entre 1985 e 2015 a indústria da cortiça perdeu metade da sua força de trabalho (restam hoje oito mil empregos); duas décadas e meia de abertura das fronteiras às importações asiáticas levaram à falência de mais de duas mil empresas têxteis e ao desaparecimento de metade da força de trabalho, uns 120 mil empregos. Na agricultura, o terramoto foi proporcional: meio milhão de hectares de solos mais pobres foram abandonados. Em 35 anos o número de explorações reduziu-se de 823 mil para umas 250 mil. O sector, que em 1950 empregava 1,5 milhões de portugueses, acolhe hoje apenas cerca de 120 mil.

Em termos gerais, Portugal perdeu para a abertura europeia e para a globalização boa parte do músculo económico e empresarial que tinha acumulado desde que, em 1960, os acordos com a EFTA transformaram o país num pólo de abastecimento de têxteis ou de calçado para a Europa rica. Em vésperas da integração europeia, a exportação de têxteis representava quase um terço do total do país — hoje ronda os 10% Mas essas perdas dizem mais do crescimento de outros negócios do que da falência dos sectores tradicionais. Olhando para o que aconteceu nos outros países europeus, a façanha da “velha economia” não fica nada mal na fotografia. Nos estágios de desenvolvimento e modernização, há sectores antigos que morrem para que outros mais modernos, com mais inovação, tecnologia e capital intensivo em vez de mão-de-obra possam nascer. Portugal combinou as receitas: conseguiu manter os sectores antigos viáveis através da incorporação de inovação, tecnologia e serviços nos seus produtos.

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A transformação

Para que essa transformação acontecesse, era preciso contar com as empresas e os empresários mais resistentes e aptos. Os empresários nortenhos ou os grandes agricultores do Ribatejo ou do Alentejo que se salvaram das falências dos anos de 1980 e 1990 provaram ter essas qualidades. Manuel Carlos, presidente da associação dos empresários do calçado, a APICCAPS, e o principal “ideólogo” da mutação do sector de produtor de bens necessários em bens de luxo, costuma lembrar que os seus associados “tiveram uma vida difícil” e a experiência tornou-os “muito competentes” no domínio da formação de preços, da criação de redes de clientes ou na gestão da política cambial. Quer dizer, aprenderam a sobreviver a mundos estranhos e por vezes hostis. Joaquim Moreira, dono da Felmini, começou a vida a vender peixe e, quando percebeu que tinha de procurar clientes, em vez de esperar por eles, meteu-se no carro e, mesmo não sabendo falar línguas, foi vendendo as suas colecções. Hoje é dono de patentes e as suas botas vendem-se nas boas lojas de Itália.

Na têxtil, os sobreviventes perceberam que a tradição de ficar à espera de encomendas e produzir o que os seus clientes lhes pediam era o caminho certo para o desastre — a China fazia o mesmo e mais barato. O importante era ter produtos para propor e não esperar por propostas. Na cortiça, a tese de que Portugal se podia dar ao luxo de viver como habitualmente por ser o maior produtor mundial de cortiça foi duramente posta em causa quando, por volta de 2000, jornalistas influentes lançaram uma campanha contra o cheiro a rolha e milhares de produtores de vinho de todo o mundo anunciaram que iam mudar para vedantes plásticos ou de metal — os famosos screwcaps. A poderosa Corticeira Amorim chegou a pensar em dedicar-se a essa área de negócio. E, na agricultura, foi-se constatando que se na produção de cereais não temos hipóteses de concorrer, havia outras culturas que, com água e com o sol português, poderiam funcionar.

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A ciência

Ao contrário do que as notícias dos jornais foram dizendo ao longo de muitos anos, os subsídios europeus à modernização não foram apenas para comprar jipes de agricultores ou para Porsches dos empresários têxteis. Foram fundamentais para criar pequenas barragens (ou o Alqueva), para fazer plantações inovadoras, para comprar máquinas de ponta ou para investir em tecnologia adaptada às necessidades das empresas. Num certo momento, a apologia de ministros ou de economistas em favor da mudança ou da inovação fez sentido. Numa entrevista ao PÚBLICO, o CEO da Corticeira Amorim, António Rios Amorim, revela as razões que permitiram à indústria corticeira sobrepor-se à concorrência dos vedantes sintéticos: “Encarámos o problema. E encarar o problema significa ver o que se passa. Analisar e fazer alguma coisa. Ter de actuar. Actuámos com I&D [investigação e desenvolvimento], com investimento, com lançamento de novos produtos. Tudo isso teve consequência na melhoria significativa da performance da rolha da cortiça.”

A têxtil desistiu dos panos baratos e tornou-se uma máquina capaz de desenvolver produtos para apresentar aos seus clientes, de inovar com fibras técnicas para nadadores de alta competição ou tecidos com temperatura ajustável ao exterior para os fanáticos do running, e, principalmente, com uma máquina logística que permite a uma marca sueca encomendar mil pares de calças hoje e ter o pedido à porta escassos dias depois. No Citeve, o centro tecnológico do sector, fazem-se hoje testes a tecidos, certificam-se fibras, desenvolvem-se componentes para o futuro. Se durante anos a ligação da ciência à indústria era uma miragem (e continua a ser na maior parte dos sectores), a têxtil usou-a para poder produzir assentos de automóveis em tecido ou pele para as marcas mais caras ou têxteis-lar com preços que deixam a milhas a competição chinesa ou indiana.

O calçado foi talvez a este propósito o sector que mais profundamente se reinventou. E a volta que deu às suas debilidades só foi possível porque no calçado se instalou um raro espírito de comunhão de esforços e de abertura à inovação — uma mudança de atitudes na qual o papel da sua associação, a APICCAPS, foi fundamental. Como o apoio do INESC-TEC, uma instituição de investigação e desenvolvimento na órbita da Universidade do Porto, desenvolveram-se máquinas inovadoras como a que permite o corte das solas com jacto de água — uma tecnologia nacional que hoje é exportada. Sessões de demonstração dentro das fábricas para todos os empresários criaram uma cultura de abertura e de emulação que resultou. Nas fábricas, engenheiros do INESC-TEC desenvolveram operações nas linhas de produção que permitiam produzir modelos diferentes sem ser necessário operar paragens técnicas. Como também aconteceu na têxtil, a indústria portuguesa do calçado é capaz de produzir pequenas séries de botas ou sapatos para responder a pequenas encomendas — um trunfo na era em que os importadores lutam por ter menos encargos com stocks nos armazéns. “O que é importante é criar uma onda; depois, as coisas acontecem por arrasto”, costuma dizer Manuel Carlos, da APICCAPS.

Na agricultura, as mudanças foram mais lentas e os resultados ainda mais espectaculares. Durante anos, políticos como António Campos ou ministros como Fernando Gomes da Silva foram avisando que o futuro do mundo rural português estava na aposta nos produtos da agricultura mediterrânica, nos quais Portugal tinha vantagens comparativas — por exemplo, a possibilidade de exportar morangos numa época do ano em que a Europa do Norte continua mergulhada no frio. Faltava uma ignição para a mudança. Uma nova geração de empresários deu uma ajuda, embora “a transformação tenha sido feita com agricultores e empresários novos em conjunto com os que já existiam”, como nota João Machado, presidente da CAP — Confederação dos Agricultores de Portugal. Associações como a PortugalFresh ajudaram a organizar a produção e a abrir portas lá fora. As expectativas de que a agricultura vai ter de duplicar a sua produção até 2050 para acudir ao crescimento da população mundial meteu o sector no radar das prioridades. Depois de 2014, a política europeia (PAC) volta a apostar no aumento da produção.

Com muito menos área cultivada e muitíssimo menos mão-de-obra, a agricultura tornou-se mais eficiente, produtiva, aberta ao mundo e relevante para a economia. A velha obsessão da auto-suficiência nos cereais (a base da alimentação humana e animal) perdeu sentido e Portugal só produz uma quinta parte do trigo ou do milho que consome. Mas em outras produções a agricultura explodiu. Em década e meia, o valor da produção cresceu 13,7% (6,5 mil milhões de euros em 2015) à custa de culturas que até há bem pouco tempo eram subalternas. No azeite, por exemplo, Portugal passou numa década de importador para o quarto maior exportador mundial (436 milhões de euros em 2015). As frutas e os legumes, que há dez anos eram um sector sem grande protagonismo, são produtos mais exportados do que o vinho (1300 contra 720 milhões de euros).

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Os desafios

Ao longo da crise iniciada após a falência do banco norte-americano Lehman Brothers, em Setembro de 2008, os chamados “sectores tradicionais” funcionaram bem porque tiveram liderança, capital, saber-fazer e também porque, perante a falta de alternativas, se revelaram um refúgio seguro. Na agricultura, o investimento cresceu pouco (0,1% ao ano), mas este dado deve contrapor-se à queda de 2,5% no resto da economia. O dinamismo mantém-se. “No actual quadro comunitário de apoio, os agricultores esgotaram as verbas para o investimento em apenas três anos, o que nunca se viu”, diz João Machado. No sector têxtil, Paulo Vaz, presidente da Associação Têxtil de Portugal (ATP), calcula que as empresas tenham investido mais de mil milhões de euros nos últimos quatro anos. E depois de reduzir em 95% a incidência de TCA [fungo causador de odor desagradável] nas 40 milhões de rolhas produzidas por dia em Portugal, a indústria corticeira mais avançada quer, pura e simplesmente, acabar com o problema. Na Corticeira Amorim, novas linhas de produção usam a cromatografia para verificar, rolha a rolha, se há vestígios de TCA.

Ganha a batalha pela sobrevivência, cortiça, têxtil e calçado parecem hoje muito mais capazes de encontrar um lugar próprio na batalha da globalização. O segredo está na especialização, no design, na incorporação de serviços e de tecnologia nos produtos — a receita usada até aqui.

O calçado português vive há dois anos a consolidar o seu extraordinário surto de crescimento, mas o seu lugar parece garantido pelo preço (um dos mais altos do mundo), pela eficiência da indústria que hoje com o mesmo número de trabalhadores de 2008 (37 mil) consegue produzir mais seis milhões de pares por ano e acrescentar mais 600 milhões de euros no seu valor de exportação (1300 milhões de euros contra cerca de 1900 milhões). A cortiça continua a crescer, a consistência de empresas como a Corticeira Amorim elevou o seu valor em bolsa até perto do atribuído ao BCP. Na agricultura, as surpresas continuam (em 2016 “Portugal vendeu mais framboesas para o exterior do que a famosa pêra-rocha”, nota João Machado) e, se o Alqueva alargar a sua zona de regadio em mais 46 mil hectares (hoje são 120 mil), as culturas do azeite, das amêndoas, das romãs ou dos legumes continuarão a crescer. No prazo de dois anos, os responsáveis do PortugalFresh estimam que o sector das frutas, flores e hortícolas venda lá fora tanto como o calçado — 2000 milhões de euros.

Maior e mais sujeita à dureza da concorrência, a têxtil encara o futuro com o mesmo optimismo. Em 2016, o sector saltou a barreira dos 5000 milhões de euros de exportação que, de acordo com o seu plano estratégico, estavam anunciados para 2020. Os postos de trabalho que se julgava virem a ser perdidos, uns 20 mil, podem afinal ser conservados. “Não quero embandeirar em arco, mas acredito que, depois de termos estancado a perda em 2014 e de o emprego no sector ter crescido nos dois últimos anos, essa previsão não será cumprida”, diz Paulo Vaz. Com as encomendas a crescer, com os clientes que há dez ou 15 anos tinham ido para a China a regressar a Portugal, com o empurrão da poderosa Zara (a maior empresa mundial do sector) a chegar todos os dias do outro lado da fronteira, a têxtil enfrenta agora uma dor de crescimento. “Estou convencido que estamos a esgotar a capacidade ociosa da indústria”, diz Paulo Vaz. No futuro próximo, a produção terá de ser cada vez mais deslocada para Marrocos ou para outros países, como já faz, por exemplo, a Pocargil. Isso é mau? “Não, o design, a investigação e desenvolvimento, a logística, a parte comercial ficam cá”, diz Paulo Vaz. A têxtil prepara-se para replicar o modelo de negócio da Nike ou da Apple.

Certo é que estes horizontes eram impensáveis quando, em vésperas da integração europeia, se olhava com desdém para sectores considerados arcaicos e inviáveis na Europa do século XXI. Com a tenacidade de homens como Fortunato Frederico, que fez a Fly London, a experiência de famílias como os Amorim ou os herdeiros de Manuel Gonçalves, com a ajuda dos fundos europeus que trouxeram tecnologia e impuseram mudança de hábitos, com o contributo da ciência dos centros tecnológicos do calçado, da têxtil ou das universidades, os sectores tradicionais cumpriram o destino do patinho feio: quando chegou a altura, transfiguraram-se em cisnes vistos com admiração e vénia na paisagem tumultuosa da economia portuguesa. Afinal, a notícia da sua morte estava, como diria Mark Twain, ligeiramente exagerada. 

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