“Nós, os Advogados”

Há uma de duas opções para um recém-licenciado: ou se sujeita a um estágio ou esquece a carreira de advogado

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Um estudo publicado recentemente apresenta-nos um panorama da advocacia portuguesa que tem tanto de assustador, como de expectável: mais de 70% (!) dos advogados portugueses estão insatisfeitos na sua profissão.

Existem vários motivos para esta insatisfação. No entanto, mais do que uma lista exaustiva destes motivos, importa afirmar que a grande maioria dos advogados estão insatisfeitos pelo facto de se verem forçados a exercer a sua profissão no regime de falsos recibos verdes e, correlativamente, sujeitos à precariedade laboral que não permite a nenhum trabalhador planear a sua vida a médio prazo.

A vida de um recém-licenciado aspirante a advogado começa por um estágio que, normalmente, tem uma remuneração que vai dos 0€ (zero euros), a valores que se ficam aquém do salário mínimo nacional. Esta indignidade tem a sua vigência garantida por uma ordem de razões perversa: o estágio é obrigatório para o acesso à profissão e não existe obrigatoriedade de o mesmo ser remunerado.

Aqui chegados, retiramos uma conclusão: há uma de duas opções para um recém-licenciado, ou se sujeita a um estágio (que coincidirá com um trabalho sujeito a horários de trabalho acima das oito horas diárias e, eventualmente, sem remuneração); ou esquece a carreira de advogado.

O argumento dos empregadores é o esperado e assenta na certeza de que haverá sempre alguém disponível a sacrificar-se em busca do que outrora fora um sonho: ser advogado. Esta lógica argumentativa também nos permite retirar uma (segunda) conclusão: não haverá trabalho digno no seio da advocacia enquanto não houver um enquadramento legal que o dignifique, não sendo solução – como nunca o é – esperar que um cidadão individualmente trave a luta de todos os seus pares. Tanto assim é que qualquer advogado precário sabe que não poderá valer-se da Lei 63/2013 de 27 de Agosto (que permite a conversão de um falso recibo verde em contrato de trabalho) sob pena de arriscar a não ter futuro nesta profissão.

A todo este cenário, que surge como uma pressão insustentável sobre a vida dos advogados e advogados-estagiários, há que acrescentar os descontos para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) cada vez mais cego (veja-se as recentes mudanças que incluíram os advogados-estagiários e retiraram benefícios aos advogados recém agregados, desprotegendo assim os profissionais que por norma se encontram em situação mais desfavorável), bem como a retenção de 25% do salário (que é do que se trata) em sede de IRS.

Sendo estas as traves-mestras em que assenta o exercício da profissão de advogado, urge que seja trilhado um caminho que terá de encontrar solução para o sem-fim de falsos recibos verdes que encontramos no exercício da advocacia. É que não basta dizer que a especialização por áreas é o futuro, sem dizer de que forma é exercida esta advocacia especializada, pois todos sabemos que será feita ao abrigo de sociedades de advogados que albergarão – como nos dias de hoje – dezenas (ou centenas) de advogados a falsos recibos verdes. Não bastará, de igual modo, vir agitar o fantasma da impossibilidade de existir um contrato de trabalho para exercício da profissão de advogado: em primeiro lugar, porque essa possibilidade existe e está contemplada no novo artigo 73.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA); em segundo, porque o previsível argumento que será trazido à discussão, e que se reconduz, brevitatis causa, ao princípio da independência dos advogados, é um verdadeiro embuste. Encontrar um regime para o exercício da profissão de advocacia que respeite a dignidade no trabalho trará um grande benefício à advocacia portuguesa: além de acabar com os falsos recibos verdes, poder-se-ão também afirmar uma série de princípios deontológicos – como por exemplo o princípio da independência – que no atual estado da arte, mais não são que letra morta.

O caminho, para mais quando se acaba de eleger um Bastonário que não teve uma única palavra concreta para este flagelo, não será reto, mas não pode deixar de ser feito. É uma questão de Justiça.

Nota: o título da crónica é inspirado na obra de 1934 de Alfredo Ary dos Santos

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