Entre o campo e a cidade, uma canção que nunca acaba

Foi no Minho que Manuel Fúria criou e gravou Viva Fúria. São "só" as canções de uma banda a tocar. É a música de alguém que se faz a música que cria. Fomos ao encontro dele na quinta minhota onde nasceu o novo disco.

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Paulo Pimenta

Manuel Fúria está sentado na cadeira a observar o cenário à sua frente. Fala-nos do moinho de água na margem do rio Vizela, cuja correnteza ouvimos à distância. Aponta o campo de trigo à esquerda, neste momento apenas um verde vivo rasteiro. Entre um e o outro, na outra margem, o arvoredo no pequeno monte. Aqui, o som da conversa que se mistura com o latido dos cães e com o som dos pássaros que se empoleiram nas árvores e que percorrem o céu neste dia de Inverno com cheiro a Primavera.

Foi aqui, nesta quinta minhota, no concelho de Guimarães, que é a casa dos seus pais e que é o seu refúgio predilecto, que Manuel Fúria gravou o seu novo álbum, acompanhado pelos seus Náufragos. Sucede a Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo, álbum conceptual, a história de alguém que queria abandonar o caos babilónico da grande cidade para se refugiar em algo mais puro, verdadeiro, mais primordial – ou seja, para se refugiar no campo, escapando ao trágico destino final enunciado no plano final dos Verdes Anos de Paulo Rocha.

O novo, que sai esta sexta-feira para as lojas e que será apresentado dia 9 de Março no Lux, em Lisboa, tem por título Viva Fúria. Na capa, exibe cores garridas, mostra design típico da cultura popular dos anos 1980 e transmite a sensação de movimento da grande cidade. É um álbum de uma outra natureza. “As letras podem ter um pendor mais parecido com aquelas que são as minhas características, mas a maneira de estar, o plano do disco tem menos agenda. Não imaginei um quadro e depois disse ‘temos que conseguir pintar este quadro’. Fui fazendo e fomos construindo. É o disco de uma banda rock a tocar”, diz ao Ípsilon. É, também, o disco de alguém às voltas com a sua memória musical (e as outras). Sem a esconder, que isso faz parte do jogo. Enquanto ouvimos com ele o novo disco, há apontar-nos aquele ‘break’ de bateria sacado aos Cure, a guitarra à Johnny Marr, dos Smiths, a canção gravada às três da manhã sob inspiração dos Red House Painters (belíssima essa lenta divagação de base acústica intitulada A porta e o cordeiro), aquela outra onde são citados os New Order ou os Sétima Legião (e Hamlet).

“Eu tento fazer as coisas do modo como acho que devem ser feitas. Se, pelo caminho, puder citar pessoas ou momentos que considero importantes, então faço-o. Os grandes cineastas citam, os grandes escritores citam”. A despedida do álbum surge em Canção infinita. Nela, Manuel Fúria entoará “sou um ladrão”, nela chegará a frase “a música terminou, mas a canção não acabou”. Enquanto a banda avança no seu ritmo contido e a guitarra de doze cordas chilreia o seu canto luminoso, ouviremos Manuel Fúria a recentrar-nos naquilo que está no coração do novo disco. Recorda a paisagem de Santo Tirso em que cresceu, o primeiro dia da primeira classe, a morte da avó, os poemas e pequenos contos que lia com os colegas em voz alta, as vezes que ouviam Jeff Buckley, os Swell, os Red House Painters, o Nick Drake. “Hei-de ser velho e cantar”, começa ele. A nova canção é a velha canção – e assim sucessivamente.

Mudar o centro de gravidade

Muito aconteceu a Manuel Fúria desde que Contempla os Lírios do Campo foi editado. Os Golpes, a banda em que se mostrou ao Portugal pop, acabou. A Amor Fúria, a editora que co-fundou e onde encontrávamos bandas como os Golpes, naturalmente, os Feromona, os Capitães da Areia, os Quais ou os Smix Smox Smux, cessou actividade. E a Fúria aconteceu-lhe esta coisa transformadora que foi um casamento e dois filhos. “Casar e ter filhos não é um pormenor de percurso, não é uma vírgula na tua vida, é um parágrafo. O teu olhar muda, o teu centro de gravidade muda. De repente, o teu umbigo muda de sítio, passa a estar na barriguinha de uma criança adorável”. No que é enquanto músico, tal reflecte-se “em tentar ser menos trapalhão e menos espalhafatoso”, diz. “O Lírios dos Campo não é um disco perfeito, longe disso, mas percebe-se que é um disco que quer ser perfeito, já e sem olhar a como”. A paternidade ajudou-o a ser mais estratégico e moderado. “Uma moderação de quem vê mais a longo prazo e que percebe que, se for moderado agora, consegue chegar aos mesmos objectivos de forma mais eficaz. Tem a ver com conseguir construir um equilíbrio entre o agora e o que há-de vir”.

Não há muito, frente às camélias no terreno fronteiro a casa, ao lado das laranjeiras por onde correm animados dois cães-de-água, mostrara-nos duas pequenas árvores brotando do solo. Plantou uma quando nasceu o primeiro o filho, meteu mãos na terra novamente quando a mulher deu à luz o segundo – Fúria é um homem que muito preza as raízes. Agora sentado no alpendre nas traseiras de casa, fala das vezes que ele e os Náufragos aqui estiveram, preparando primeiro, gravando depois, o álbum que agora ouviremos. Fala da maravilha que é descansar à sombra no calor do Verão enquanto um disco dá música ao dia e a tarde corre lenta e sem preocupações. “Já percebi que gostava de morrer assim. Velho e durante um Verão quente, para poder de estar de calções. Os netos a brincar aqui à frente, eu a beber um copo e a música a tocar. Depois adormecia e não acordava mais”, sorri. Morte santa em cenário idílico. Manuel Fúria terá tempo para isso e esse tempo não é agora. Agora, Inverno com cheiro a Primavera de 2017, há um disco a chegar. Um disco de canções pop rock, tão simples e tão complexo quanto isso, onde a ambição épica de Contempla os Lírios do Campo é substituída por uma abordagem mais directa, mas onde se nota a pena do seu autor no apreço pela estética sonora da década de 1980, no romantismo da lírica, na forma como citação e autobiografia se conjugam numa vontade de criar algo tão particular e tão abrangente quanto possível - “a minha vontade e o desejo que tínhamos era o de acrescentar ao cancioneiro popular português”, dirá ele, falando sobre as motivações da sua Amor Fúria e dos seus Golpes, mas, trocássemos o tempo passado da citação pelo presente, e tal seria ainda manifestação certeira dos seus propósitos. Quanto a isso, Viva Fúria, que pecará apenas pela ausência declarada dessa visão de conjunto, quase em modo manifesto, que lhe conhecíamos, não engana. Viva Fúria nasceu aqui.

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Paulo Pimenta

“Acordávamos de manhã, dávamos um mergulho no tanque, gravávamos três ou quatro horas pela manhã. Depois tínhamos um almoço dos bons, um prato pesadão para dar força, descansávamos um bocado e voltávamos ao ataque”. Assim foi durante os dez dias de gravação com a banda de sete elementos e com produção a cargo dos Salto. O ataque de que fala Fúria dava-se em território sagrado, verdadeiro mausoléu desse artefacto precioso que é o vinil. O pai de Manuel Fúria, Rogério Barbosa, é um dos grandes coleccionadores portugueses. Começou nos anos 1960, quando era responsável pela animação musical de bailes e festas de garagem e não mais parou até hoje.

Caminhamos pelo interior da estrutura instalado na quinta e pasmamos parede a parede, coluna a coluna de discos cuidadosamente organizados por ordem alfabética, cronológica e de género. Temos a impressão que, aqui, vamos encontrar o que quer que seja que procuremos, de uma edição rara dos Beatles ou de Amália a edições de autor de cantores folk feitos gurus da década de 1970, de novidades dos Black Angels a disco-sound com capa arrojada, de preciosidades indie da década de 1980 a EPs de bandas portuguesas dos anos 1960 que duvidávamos que pudessem ainda existir em circulação. “Eu já tinha o Spotify em casa antes de ele existir”, brinca Manuel Fúria. Foi ali, entre todos aqueles discos com que cresceu e que o pai continua a coleccionar, que Viva Fúria foi nascendo e ganhando forma. Guia e inspiração. Exemplo avulso: Lembrava-se de um excerto de bateria de In between days, dos Cure, que queria numa música, e era só ir à prateleira para o mostrar aos Náufragos.

Quando falamos do apreço pela década de 1980 que o marcou nos anos formativos e pelo sobressalto pop que, em Portugal, trouxeram bandas como os Heróis do Mar, uma das suas referências maiores, acentua que não há nisso nada de nostálgico. A ideia sempre foi “começar algo de novo, partindo dos mesmos termos”. Conservador convicto – “se as coisas estão mal, para quê piorar?”, lança como boutade -, homem avesso à ideia de progresso tecnológico como medida para a evolução real da Humanidade – “somos sempre iguais desde esse misterioso momento em que o Homem passou a ser aquilo que é e os grandes problemas e as grandes questões não são resolvidas pelo desenvolvimento tecnológico, que, muitas vezes, só traz mais ruído” -, Manuel Fúria reconhece que o seu novo pode até, por vezes, soar antigo. Mas o que é realmente esse antigo? “Sinto-me confortável com as coisas velhas porque, para mim, não são velhas. Para mim, não há velho e novo, há coisas boas e más, coisas que te ajudam e coisas que não te ajudam”.

Ajudam-no a história que guardam os vinis do pai a rodeá-lo desde sempre. Ajudam-no as linhas de baixo altíssimas no novo disco dos Justice a rodar no carro no regresso a Lisboa. Ajuda-o estar nesta quinta minhota com os Náufragos à sua volta a darem corpo às suas ideias, a criarem com ele a pop dançante de 20000 Naves, o ataque imaculadamente Smiths da irresistível Cala-te e dança ou a atmosférica Cavalos brancos que levita sustentada no sintetizador. Ajuda-o a fantasia que sustenta as grandes proclamações. “Não sou de esquerda, nem de direita. Sou de um Portugal que ainda não chegou”, disse ao Ípsilon quando da edição de Contempla os Lírios do Campo, segundo tomo de uma trilogia que há-de completar-se mais à frente. Devolvemos-lhe a frase agora. E ele diz: “Portugal cumprir-se-á. Não quando, não sei de que modo, mas mesmo que fosse uma fantasia, e não acredito que seja, é mais saudável acreditar numa fantasia que não acreditar em nada. Perigosas são as pessoas que não acreditam em fantasias e só acreditam em si próprias. Os manicómios estão cheios de gente que só acredita nela própria, todos muito rigorosos e coerentes no mundo que criaram”.

Está a preparar-se para entrar no carro que o levará a Lisboa. Pára um momento, enquanto o sol começa a desaparecer e as sombras caem sobre o arvoredo, fumo a levantar-se das chaminés das casas. “É sempre um aperto quanto tenho que ir embora”, suspira. Vai, claro, mas sempre com regresso marcado. Vai para levar onze novas canções Portugal fora. Isso cumprir-se-á. Portugal logo se vê. Entretanto, Viva Fúria. Não é?

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