Governar para os offshores

Há questões para além da responsabilidade política, de quem chefiava o Governo e as Finanças.

Governos europeus recuperaram receitas passando a pente fino as listas de contas nos offshores do Liechenstein e da Suíça. Desde 2009 que venho inquirindo o que foi feito dessas listas, entregues a Portugal. Cheguei a interpelar os ministros Teixeira dos Santos e Maria Luís Albuquerque: ele disse não ser oportuno divulgar; ela, que era com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Pode ser legal transferir capitais para offshores. Mas é suspeito e por isso tem de ser fiscalizado, em aplicação das directivas europeias contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo (BC/FT) - como demonstram os "Papéis do Panamá".

Troca de informações automática entre autoridades, registos acessíveis, publicação de estatísticas, etc... transparência e fiscalização são as armas para combater a opacidade dos offshores. "Entidades obrigadas" - bancos, advogados, contabilistas, consultores, imobiliárias, etc - têm deveres de "compliance". Cabe às autoridades, tributárias e outras, cruzar dados, certificar-se da origem lícita do capital, do pagamento de impostos. Se tiverem capacidades, meios, orientações, incentivos. 

Ora, a Autoridade Tributária (AT) portuguesa, nos últimos anos, não teve. Viu impedir a publicação de estatísticas referentes às transferências entre 2010 e 2014 por Paulo Núncio, que Paulo Portas indicou para os Assuntos Fiscais em 2011.

Viu travada a análise e cruzamento de dados sobre 10 mil milhões de euros de transferências entre 2011 e 2014. Porquê e por quem - a Assembleia da República terá de apurar, bem como se foram controladas as de ainda mais elevado montante efectuadas em 2015.

Com Núncio, os recursos da AT foram reforçados e direccionados para cair sobre classes médias e os mais fracos. Em contrapartida, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais eliminou mesmo a Unidade dos Grandes Contribuintes! A que devia assegurar que as famílias mais ricas do país pagassem 25% do IRS, em vez de só pagarem 0,5%... 

A AT viu-se impedida de fazer o seu trabalho também relativamente a grandes grupos económicos: desapareceram ficheiros enviados pelos bancos apagando o rasto de certas transferências...e apareceu uma lista secreta de contribuintes VIP para desencorajar funcionários da AT de cruzar dados, patrimónios e transferências de certas pessoas.

Paulo Núncio era advogado especializado em offshores. Tinha criado empresas na Madeira, interviera no negócio ruinoso das viaturas blindadas Pandur, decidido por Paulo Portas. PSD e CDS/PP não o deixaram sequer comparecer na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre aquisições de equipamento militar...

Núncio sabia que a amnistia fiscal (RERT III) que fez aprovar em 2012 era um mecanismo para branquear capitais, permitindo a criminosos e evasores fiscais limpar cadastro e nem sequer ter de repatriar capitais (como os da ESCOM e BES que receberam comissões pela compra dos submarinos...).

Sabia que despachava, em Outubro de 2011, contra parecer da Inspecção Geral de Finanças (IGF), para dar isenções de milhares de milhões a grupos económicos que passavam a poder transferir lucros como dividendos de SGPSs para sociedades-mães, por exemplo, sediadas na Holanda...

Sabia que um artigo da IV Directiva BC/FT interessava aos offshores para continuarem a ofuscar beneficiários efectivos: tornou esse artigo na lei 118/2015, mesmo antes de transposta a Directiva. 

Sabia que podia passar de quatro para 12 anos o prazo para a AT tentar recuperar receita de transferências transfronteiriças não fiscalizadas: elas dão origem a outras para fazer perder o rasto.

Sabia que a Zona Franca da Madeira estava "fora de controlo" (concluíra a IGF), mas deixou-a em roda livre. Da Madeira não se conhecem os milhares de milhões que saíram em transferências transfronteiriças desde 2010, embora se saiba que não foram fiscalizadas pela AT nacional.

Paulo Núncio quis entretanto assumir "responsabilidade política". Há questões por responder que devem ir para além dela. Que, de facto, pertence a quem chefiava o Governo e a pasta das Finanças - Passos, Portas, Gaspar e Albuquerque. Porque, com Núncio nos Assuntos Fiscais, PSD e CDS/PP governaram para os offshores.

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