O piano que salvou a vida de Sampha

O pai comprou-lhe um piano aos 3 anos. É apenas um instrumento, mas em Process, o álbum de estreia, depois de colaborações com Drake, Solange ou Frank Ocean, representa também uma certa ideia de casa, de família e de superação da morte. “Às vezes penso que aquele piano me salvou a vida", diz.

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Desde que se lembra que canta. “Algumas das minhas memórias mais nítidas da infância são de mim a cantar pela casa, deve ter sido influência da minha mãe que também o gostava de fazer”, diz-nos o inglês Sampha Sisay, 28 anos, com um álbum de estreia, Process, lançado há semanas.

Está longe de ser um desconhecido. Desde que um público mais vasto deu pela sua voz no álbum homónimo de 2011 de Aaron Jerome, mais conhecido por SBTRKT, que não mais parou, tendo-se sucedido convites para colaborações, vocais ou enquanto produtor, por parte de nomes dos cenários mais alternativos britânicos (Lil Silva, Jessie Ware, Koreless, FKA Twigs), mas também de estrelas do firmamento R&B e hip-hop do outro lado do Atlântico como Drake, Kanye West, Solange e Frank Ocean. Pelo meio houve dois EPs (Sundanza e Dual) na editora Young Turks (The xx, FKA Twigs, SBTRKT) e agora um álbum.

Faz parte de uma geração, ao lado de James Blake ou de Ifan Dafydd, que situa algures entre a pop futurista e a ideia clássica do autor de canções, entre o homem-máquina e o trovador, entre o ruído electrónico e a soul. De fora, o seu álbum parece quase uma obra conceptual, com ele a expor inseguranças, fragilidades e dificuldades na relação com a ausência, o afastamento, a morte. Liricamente é um disco de memórias, de penitências e da procura de si mesmo. A nível sonoro predomina uma moldura electro-soul com o piano e a voz em destaque nos momentos mais envolventes. A sua interpretação é controlada. É uma música sugestiva e imagética. Há cor e espacialidade, mas também um sentido clássico das proporções. Está longe de ser um disco que propõe novas formas de olhar a realidade e o seu impacto emocional por vezes ressente-se de um tipo de expressão suavizada. Mas ainda assim, é uma estreia solitária muito confiante.

“Ter colaborado com outras pessoas foi importante em termos de segurança, ao mesmo tempo que me permitiu ir amadurecendo ideias e este disco acaba por ser o resultado de tudo isso”, afirma, acrescentando que ter trabalhado com SBTRKT foi determinante. “Todas as pessoas que fui encontrando foram importantes, mas foi talvez com SBTRKT que aprendi mais, a cantar, produzir, a viajar e a andar por aí em digressão. Ele mostrou-me que ter uma visão, e a necessária confiança para a desenvolver, são essenciais nesta vida. Foi com ele que me desinibi e aquilo que compunha foi adquirindo a forma de canção.”

Para lá da morte

Para além das experiências musicais, outro tipo de acontecimentos da sua vida pessoal acabaram por determinar a feitura do disco. Quando era adolescente teve de lidar com o problema de saúde que deixou um dos seus quatro irmãos – é o mais novo – incapacitado fisicamente, sendo ele em parte que teve de cuidar dele. Em 1989 foi o pai que morreu, vitimado por cancro. Mas foi o período de dois anos de doença da mãe, que viria a morrer em Setembro de 2015, também devido a cancro, que mais o desassossegou. Durante os períodos mais críticos foi na música que encontrou amparo. Ela foi para o hospital e ele enfiou-se no estúdio. “Olhando para trás percebo que foi um mecanismo de escape, mas é humano, por vezes é a forma que encontramos para lidar com problemas à nossa volta. Com a música a dor tornou-se mais suportável.”

Algumas canções contêm elementos biográficos, mas Sampha não se revê na ideia que sejam reveladoras. “Espelham quanto muito uma pequena parcela de mim, mas seria desonesto da minha parte afirmar que são inteiramente sobre acontecimentos que se reportam à minha vida”. Dá o exemplo da cândida balada (No one knows me) Like the Piano, sobre o instrumento que o seu pai comprou a um vizinho quando ele tinha três anos. “Foi nele que aprendi a tocar, mas a canção não é o relato de qualquer situação concreta, impõe antes um clima nostálgico e era isso que queria exprimir: essa sensação de perda, de algo que se dissipa. Existe sempre algo meu nas canções. Mas apenas partilho uma parte de mim.”

Terá razão. Mas a referida canção é até uma das mais transparentes do disco, reportando-se aos dias em que regressou a casa da mãe, vigiando-a, estando perto dela, vendo-a ausentar-se lentamente. “Foi um tempo muito duro, tentando cuidar dela, vivendo os avanços e recuos de todo aquele processo e ao mesmo tempo tinha a minha carreira musical para gerir”, reflecte. Em casa voltou a encontrar o piano com quem cresceu, como se ele simbolizasse o que é perene, o que fica para sempre, para lá da morte. “Às vezes penso que aquele piano me salvou a vida”, ri-se, “mostrando-me que existem muitas formas de ordenar as emoções.” A música tem esse poder? “Sim, faz-nos viajar, seja para o interior de nós próprios, seja para fora, e esse é um poder incrível”, responde. “Recordo-me de ter tido uma conversa com Solange sobre esse poder e de concordarmos que ele existe mesmo.”

De todas as colaborações com nomes cimeiros da indústria guarda com afecto a relação com Solange. “Às vezes mostrar música a outras pessoas pode ter um efeito positivo ou negativo sobre o que estamos a fazer. Por vezes desejamos secretamente que apenas nos digam que o que estamos a fazer é bom. Solange é dessas raras pessoas que sabe ser crítica sem deixar de encorajar e isso é precioso. Por outro lado é determinada e faz o que realmente quer e isso é inspirador.”

A irmã mais nova de Beyoncé lançou o ano passado o álbum A Seat At The Table, testamento pessoal e comunitário sobre a experiência da negritude nos Estados Unidos, tanto ontem como hoje, congregando uma perspectiva individual, cultural e social. “Falámos muito sobre o seu lado mais político”, confessa Sampha, que admite ter sido contagiado, embora não seja tão peremptório quanto Solange que ainda há semanas aludia que a não atribuição dos Grammys mais relevantes do ano à irmã – em favor de Adele – constituíam a prova de parcialidade cultural em relação aos artistas negros por parte da indústria da música.

“Não seria tão peremptório nisso. Admito que existe um ambiente cultural genérico que poderá ser mais benéfico para uns dos que para outros mas em relação aos Grammy não estive muito atento, nem tenho opinião formada.” Já acerca do Brexit é mais peremptório. “Os meus pais vieram da Serra Leoa para Londres e parte da minha família vive lá, por isso sempre encarei este país como acolhedor para quem vem de fora. Sinto-me inglês, mas consigo encontrar facilmente afinidades com pessoas de todo o mundo e isso não se vai perder com o Brexit. Mas, sim, haverá mais isolamento e isso não parece que seja grande coisa.”

Sampha fala baixo. Parece tímido. Há uns anos dizia que entrar em palco era um momento difícil para ele. Hoje essa sensação não desapareceu, mas diluiu-se. “Continuo a ter dificuldade em falar com audiências, não é algo que me saia de forma natural, mas também já não me escondo. Fui obrigado a confrontar-me com a experiência do palco e hoje já estou mais descontraído. Fui também conhecendo-me melhor. Hoje em dia faço exercícios antes, tento estar o mais focado possível. E vai resultando.”

Em Junho pisará o palco do festival Nos Primavera Sound do Porto com o seu grupo de quatro músicos, e entre eles poderá estar a excelente violoncelista e cantora Kelsey Lu, que o tem acompanhado ultimamente e que actua solitariamente nas primeiras-partes. “Conhece-a?”, exclama ele, quando mencionamos o nome da americana, autora do excelente Church (2016). “Tem sido um enorme privilégio andar em digressão com ela, é um ser humano extraordinário e uma virtuosa no seu instrumento”, atira ele. “Tenho a certeza que ela vai ser enorme.” É bem provável. Tão certo como nos próximos meses irmos ouvir muito Sampha.

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