Livros, teatro, dança, futebol e um capitão iraquiano

Östersunds é a primeira equipa europeia capitaneada por um iraquiano. Subiu três escalões em cinco anos e a cultura faz parte dos treinos

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A braçadeira de capitão do Östersunds FK pertence a Brwa Nouri DR

O campeonato sueco só começa em Abril, mas o Östersunds FK já começou a destacar-se: vai ser a primeira equipa europeia a ter como capitão um futebolista internacional pelo Iraque. Chama-se Brwa Nouri, tem 30 anos e, meses depois da estreia pela selecção, viu reconhecido o seu papel no clube. “Era um dos vice-capitães na época passada, mas este ano será a ele que caberá envergar a braçadeira”, confirmou ao PÚBLICO o assessor do Östersunds, Patrick Sjoo. Mas houve um longo caminho a percorrer até Nouri aqui chegar.

O médio nasceu em Halabja, perto da fronteira com o Irão, mas viajou ainda jovem para a Suécia com a sua família (utilizando documentos iranianos, o que viria a atrasar a sua convocatória pelo Iraque). No novo país, Nouri não demorou a destacar-se: fez um total de seis jogos e marcou um golo pelas selecções sub-17 e sub-19. “Era considerado uma grande promessa quando estava nos escalões de formação do AIK”, contou ao PÚBLICO Hassanin Mubarak, que acompanha atentamente os futebolistas iraquianos na diáspora. “Mas ele desencaminhou-se quando se envolveu em drogas e gangues. Chegou a ser detido numa rusga e o clube decidiu emprestá-lo, apesar da carreira promissora que lhe adivinhavam”, acrescentou.

Nouri passou alguns anos à deriva, até chegar ao Dalkurd FF, com 22 anos. “A equipa fazia parte de um projecto social comunitário para afastar os jovens da violência e do crime”, disse Hassanin Mubarak. Nouri tornou-se um ídolo no clube, que ajudou a subir ao terceiro escalão, e atraiu a atenção do Östersunds, que na altura disputava a II Divisão. E foi como se o futebolista nascido no Iraque tivesse finalmente chegado a casa.

O Östersunds, ou ÖFK como é tratado pelos adeptos, não é um clube como os outros. Fundado apenas em 1996, resultado da colaboração de três emblemas da região, teve de encontrar formas originais de atrair jogadores: situada a mais de 500 quilómetros a norte de Estocolmo (seis horas de viagem por estrada), a cidade pagava o preço do isolamento. Mas houve um homem a quem nada conseguiu demover. Daniel Kindberg é o presidente do ÖFK e há uns anos era quase alvo de chacota quando dizia que queria levar o clube à Liga sueca e um dia, quem sabe, à Liga dos Campeões. Mas hoje esse cenário não é assim tão descabido.

O homem que está a tornar realidade o sonho de Kindberg chama-se Graham Potter. Treinador inglês de 41 anos, admirador confesso de Jürgen Klopp, assumiu o comando do Östersunds em 2011, quando o clube estava no quarto escalão. Três subidas de divisão depois, colocou-o junto à elite e na estreia absoluta no principal escalão, em 2016, a equipa terminou num honroso oitavo lugar. “No início tínhamos umas 500 pessoas no estádio. Não havia cultura de futebol, chamam a Östersund a Cidade do Inverno porque sempre saíram daqui esquiadores. Mas agora os jovens estão a praticar futebol, vemo-los com a camisola do clube”, disse ao The Guardian. Agora as bancadas estão regularmente esgotadas.

Tudo isto foi conseguido enquanto o clube desenvolvia um projecto paralelo de “academia cultural”, impulsionado por Kindberg. Todos os anos o ÖFK leva a cabo uma gala cultural, cujos ensaios decorrem em paralelo com a temporada futebolística. Há música, dança, teatro com os futebolistas e funcionários do clube como protagonistas – para além disso, os jogadores têm um clube de leitura, encontram-se com crianças das escolas locais e têm actividades com refugiados. Um dos momentos altos da gala que encerrou a época 2016 foi a leitura do poema Refugees, de Brian Bilston.

“Expor os jogadores a outros aspectos da vida – seja o teatro ou o trabalho com refugiados – torna-os pessoas mais completas. Mais corajosos e mais abertos a entender os outros”, sublinhou o treinador Graham Potter, que depois de terminar a carreira e jogador e antes de rumar à Suécia estudou Ciências Sociais e fez um mestrado em liderança e inteligência emocional. “Se tudo o que fazem é jogar futebol, os jogadores estão confortáveis. Queremos que se desenvolvam enquanto pessoas, que passem por experiências desconfortáveis”, frisou.

Brwa Nouri saberá melhor do que ninguém o que isso é – e é ele, justamente, um dos dinamizadores do clube de leitura. Tudo começou quando alguém reparou que ele estava a ler Crime e Castigo de Dostoiévski, na viagem para um jogo. “Só porque sou futebolista significa que sou uma pessoa que não pensa?”, questionou o internacional iraquiano. A iniciativa de Nouri já teve repercussões: quando no clube de leitura estavam dedicados a Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, a autora fez um vídeo de agradecimento.

“A literatura e o futebol funcionam bem em conjunto. Espero que continuem a ler. Temos muitas formas de contar as nossas histórias. O futebol é uma delas. A leitura é outra. É fantástico que estejam a juntar as duas”, elogiou Chimamanda. E, numa cidade remota da Suécia, o ÖFK vai escrevendo uma história inédita.

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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