Manoel Oliveira a dançar o tango e terços pela conversão de António Macedo

Os acontecimentos de 13 de Maio de 1917 em Fátima inspiraram vários filmes. Por cá, o mais polémico foi As Horas de Maria, com direito a apedrejamentos às portas do cinema e a orações pela conversão do realizador que a Igreja classificou como blasfemo.

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Fátima Milagrosa (1928), de Rino Lupo DR
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Fátima, Terra de Fé de Jorge Brum do CantoFabrizio Costa DR
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Horas de Maria (1976), de António Macedo DR
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Fátima (1997), de Fabrizio Costa DR
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O Milagre Segundo Salomé (2004), de Mário Barroso DR

Com maior ou menor adesão à tese das aparições em Fátima, o fenómeno alastrou aos ecrãs de cinema um pouco por todo o mundo, sob o olhar de realizadores como os irmãos Dominic e Ian Higgins, em O 13º Dia (Finding Fatima, 2010), ou como John Brahm, que em 1952 apresentou The Miracle of Our Lady of Fatima, numa produção da Warner Brothers que colocou a Cova da Iria no mapa de Hollywood e, a partir daí, dos peregrinos de todo o mundo. Os papéis dos pastorinhos são interpretados por Susan Whitney (Lúcia), Sammy Ogg (Francisco) e Sherry Jackson (Jacinta). A banda sonora, de Max Steiner, chegou a ser nomeada para um Óscar, sendo que esta produção norte-americana parte da reconstituição dos acontecimentos de 13 de Maio de 1917, quando três pastorinhos alegam ter visto a Virgem Maria surgir junto a uma azinheira, como pretexto para, em tom mais anticomunista do que pró-católico, reflectir sobre os males do mundo que, em época de Guerra Fria, se localizam claramente a Leste.

A ênfase colocada num suposto controlo dos comunistas sobre o Governo português de então terá ido beber a um outro filme, La Señora de Fatima, que o espanhol Rafael Gil apresentara um ano antes, em 1951. Com argumento de Vicente Escrivá, esta co-produção luso-espanhola rodada em Fátima e nos arredores de Madrid foi considerada o melhor filme do ano em Espanha, para o Sindicato Nacional dos Espectáculos, mas, segundo a crítica, não era uma obra especialmente bem conseguida.

Muito antes disso, em 1928, o realizador italiano Rino Lupo, que se radicara em Portugal depois de ter feito carreira pela Europa, apresentara Fátima Milagrosa, apenas 11 anos decorridos sobre os acontecimentos e numa altura em que o cinema ainda era mudo. No elenco, além da então jovem mas já com franjinha Beatriz Costa, aparece também Manoel de Oliveira, ainda longe de se tornar um realizador de culto, embora apenas em breves momentos de figuração (ao lado do seu irmão Casimiro Oliveira), num dos quais a dançar um tango.

Os interiores foram filmados nos estúdios da Invicta Film, no Porto, com exteriores em Guimarães, Santo Tirso e Fátima. Mas o interesse histórico deste filme reside sobretudo nos largos excertos documentais da peregrinação a Fátima de 1927, numa altura em que a Cova da Iria era ainda um local ermo e sem construções. De resto, longe de tentar reconstituir os acontecimentos em Fátima, o enredo do filme situa-se no norte de Portugal, e nas atribulações da paralítica Aninhas (Ainda Lupo) que, depois de ter clamado em vão por um milagre à Senhora de Lourdes, na Penha, em Guimarães, decide recorrer a Fátima.

Jorge Brum do Canto, que chegou a ser um dos mais conhecidos realizadores do cinema português, também não resistiu ao potencial cinematográfico de Fátima, e, no dia 2 de Junho de 1943, estreou no Éden, em Lisboa, o seu Fátima, Terra de Fé. Esta primeira longa-metragem de fôlego sobre estes acontecimentos gira em torno do doutor Silveira (Barreto Poeira), que decide abandonar a sua família fervorosamente católica e ir viver para Coimbra, onde estabelece uma clínica. Mas, quando o seu filho sofre um acidente e a ciência não lhe vale, Silveira é forçado a recuar no seu ateísmo e lá se rende depois de uma cura milagrosa.

Muito menos pró-católico foi As Horas de Maria (1976), de António Macedo. Respirando os ares da época, o realizador apresentou uma obra marcadamente iconoclasta – blasfema, na opinião da hierarquia da Igreja Católica –, que, quando se estreou em 1979, suscitou violentas reacções de desagrado dos sectores mais conservadores da sociedade, com direito até a apedrejamentos à porta do Cinema Nimas, onde se amontoaram católicos a rezar o terço e a pedir a conversão de Macedo. Inspirado num caso verídico, e parcialmente rodado em Fátima, o filme segue a história de uma rapariga cega, supostamente violada pelo padrasto e encerrada num hospício, onde alimentava a esperança de um milagre de Nossa Senhora de Fátima. 

António Macedo, um dos nomes do Cinema Novo português, realizara antes, em pleno PREC, o Fátima Story, uma co-produção da Cinequanon e da RTP que retrata o fenómeno das peregrinações a Fátima, registando a de 1975 e propondo uma visão crítica dos comportamentos e atitudes das instituições, nomeadamente da Igreja Católica.

O Milagre Segundo Salomé, que Mário Barroso filmou, a partir do romance homónimo de José Rodrigues Miguéis, justificaria igual polémica, mas, no ano em que estreou, 2004, a liberdade de expressão enraizara-se já nos preceitos legais. E, por outro lado, embora a religião surja criticada na sua exploração como analgésico para a miséria extrema em que vivia o país rural, o paralelismo com os acontecimentos de Fátima surge disfarçado. A protagonista, depois de uma incursão pela alta sociedade, anseia voltar para a sua terra Meca, mais exactamente para a Cova da Ursa, numa clara analogia com Fátima e Cova da Iria, cujas aparições são caracterizadas como equívocos oportunisticamente rotulados como milagre para aproveitamento financeiro de uns quantos. Escrito uns anos antes, o romance de Miguéis teve compreensivelmente que esperar por 1975 para poder ser publicado. No elenco, tem actores como Nicolau Breyner, Paulo Pires e Margarida Vila Nova, além de Ana Bandeira. A banda sonora é de Bernardo Sassetti.

Em 1997, coubera a Mísia assegurar algumas das canções que compuseram a banda sonora de outro Fátima, desta vez em versão delicodoce, com Catarina Furtado e Diogo Infante a protagonizarem um par romântico, tendo como pano de fundo a história dos três pastorinhos, dos quais a personagem interpretada por Catarina Furtado se torna cúmplice. São 104 minutos de uma produção luso-italiana realizada por Fabrizio Costa, que embora se tenha anunciado como “um hino à alegria e à fé” rapidamente ficou esquecida. 

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