O Iraque vai à Bienal de Veneza em resposta ao “genocídio cultural”

É a primeira vez que parte da colecção do Museu Nacional do Iraque sai do país para ser exibida ao lado de trabalhos de oito artistas contemporâneos entre 13 de Maio e 26 de Novembro.

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Um carro de brinquedo (3000 A.C.) Iraq Museum/Ruya Foundation

Se hoje o Iraque é sinónimo de guerra e destruição, em tempos foi o berço cultural da civilização antiga. É com o intuito de pôr em diálogo a glória dessa época e o caos do presente que o Iraque se apresenta na 57ª edição da Bienal de Veneza, que decorre entre 13 de Maio e 26 de Novembro, em Itália. O pavilhão iraquiano, Archaic, será encabeçado por um conjunto de 40 artefactos do espólio do Museu Nacional do Iraque que abarcam um período de seis milénios, do Neolítico à Neo-Babilónia, e que serão exibidos ao lado de obras de oito artistas contemporâneos. “É mais importante que nunca que as pessoas de fora do Iraque vejam estes objectos e percebam o seu significado cultural, nesta altura em que estão a ser destruídos em Palmira, em Nimrud e em Mosul”, afirma a co-curadora Tamara Chalabi, citada pelo jornal britânico The Guardian.

Parte dos objectos que irão ser mostrados em Veneza irão sair do país com autorização pela primeira vez, uma vez que foram recentemente devolvidos ao Iraque após serem pilhados em 2003 durante o avanço das tropas norte-americanas sobre as forças de Saddam Hussein. Entre as peças seleccionadas para a exposição encontram-se objectos como jarros e bules de barro, artefactos com fins medicinais, instrumentos musicais, peneiras, selos e figurinos de pessoas, animais e divindades, alguns deles que remontam a 6100 A.C. “Estes objectos têm uma universalidade que transcende a geografia e essa é uma mensagem importante para levar a um cenário global como Veneza”, acrescenta Tamara Chalabi. Alguns dos artefactos recuperados incluem uma pequena unidade de medida de peso em forma de pomba e um figurino de barro de uma deusa da fertilidade, ambos devolvidos pela Holanda em 2010 na sequência de uma operação da Interpol.

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Uma figura que representa uma deusa da fertilidade (5000 A.C.) Iraq Museum/Ruya Foundation

Archaic é, de acordo com Chalabi, uma resposta directa ao “genocídio cultural” que o Estado Islâmico tem perpetrado no Iraque e na Síria. “[A exposição] é uma forma de lutar contra o preconceito cultural e contra a ideia de que não há arte que reste no Iraque ou que valha a pena salvar”, sublinha a também historiadora. Trazer a cultura iraquiana a um dos maiores eventos mundiais de arte – que deverá receber pelo menos 500 mil pessoas – parece o caminho certo para preservar a herança cultural daquele país, já que desde 1988 que o Museu do Iraque não dava autorização a que nenhuma obra saísse para o exterior.

Após estar fechado durante 12 anos, o Museu Nacional do Iraque, em Bagdad, reabriu em 2015, após ter recuperado um terço dos cerca de 15 mil objectos roubados e contrabandeados durante o conflito. Como resultado, as medidas de segurança ficaram mais apertadas, e as autoridades levaram a cabo uma norma de bloqueio que só agora foi ultrapassada. “Ironicamente, até agora, a não ser que uma obra fosse roubada, era impossível sair do Iraque”, explica Chalabi.

A Fundação Ruya, que está a organizar a participação do Iraque na Bienal, explica que o nome da exposição descreve um país “cuja realidade política, administrativa, social e económica é tão arcaica como a sua herança antiga”. Os curadores arriscam mesmo dizer que a arte que se faz naquele país continua a “obedecer a uma tradição estética ortodoxa que tem sido limitada pela educação tradicional e pela falta de troca cultural no Iraque em décadas”.

É no sentido de aproximar o antigo e o contemporâneo que a Bienal acolherá obras de oito artistas contemporâneos, entre os quais Sadik Kwaish Alfraji, Luay Fadhil, Nadine Hattom, Sakar Sleman e Ali Arkazy. Este último é um reconhecido fotojornalista que tem feito a cobertura da vida pós-Hussein a partir das linhas da frente da guerra, dedicando-se a retratar o modo como a guerra afecta os soldados, os civis e a terra. A exibição conta, ainda, com obras deixadas por Jewad Selim e Hassan Shaker Al Said, tidos como os pioneiros da arte moderna iraquiana.

A Bienal de Veneza recebe nesta edição um total de 120 artistas, sendo que mais de um terço dos convidados provém da América Latina, do Médio Oriente, da Europa de Leste e da Rússia, e é dirigida por Christine Marcel, curadora principal de arte contemporâneo no Centro Pompidou de Paris. 

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