Descentralização, património cultural e museus: pensar primeiro, fazer depois

Não deixa de ser espantosa a facilidade com que a sociologia da máquina administrativa do Estado consegue pôr governantes no bolso.

Após semanas de intensa barragem mediática, numa cruzada em que Governo e Presidente da República procuram cada um surfar mais rapidamente e melhor do que o outro, chegou finalmente a altura de descer à terra em matéria da chamada descentralização. Sendo certo que nesta “mãe de todas as reformas” o móbil principal, sejamos francos, é o do controlo do território, uma das poucas reservas de soberania que ainda vamos tendo, a verdade é que o Património Cultural e Museus comem também por tabela. Regionalista e municipalista, como sou, não tenho qualquer reserva política de fundo quanto à transferência de maiores competências para os níveis da vida cidadã regional e local. Mas tenho tudo contra os processos politicamente opacos e tecnicamente canhestros, promotores da instalação de máfias ou sinecuras, isentas de verdadeiro controlo democrático, garantido pelo contrabalanço de poderes.

Há dois anos, antes das últimas eleições portanto, expressei neste jornal opiniões aparentemente muito concordantes com o caminho presente. Aparentemente apenas, porém, porque tenho de admitir que tudo agora é vago, misterioso e destituído de fundamento estratégico. Por falta de espaço e na esperança que em sede de debate parlamentar possam estas matérias ser dissecadas em profundidade, detenho-me por agora somente em duas das medidas que se diz querer promover: a passagem para tutela das autarquias de monumentos nacionais e de museus não nacionais.

Quanto aos primeiros, pergunta-se: Que exactas competências normativas e fiscalizadoras terão as Autarquias (e também as CCDR- Comissão de Desenvolvimento Regional)? Serão livres, por exemplo, de estabelecer os critérios de restauro ou uso de um qualquer monumento nacional à sua guarda? De aprovar projectos de grande dimensão e intervenção no subsolo, portanto com potenciais impactes arqueológicos? De proceder à atribuição de autorizações de escavação arqueológica: todas, apenas algumas, nenhumas? E se tudo isto for assim, que fica a restar de nacional, em bens como tal classificados ou legalmente protegidos e por cuja tutela todo o conjunto da comunidade portuguesa se deveria considerar responsável? Qual o universo de monumentos e palácios nacionais a transferir? Todos, com excepção dos classificados como património mundial? Não será um tanto estranho, senão risível, que para um monumento ser considerado susceptível de tutela nacional tenha de ser validado internacionalmente?

Quantos aos museus, as questões a colocar são ainda mais constrangedoras, porque manifestamente se trata aqui de pura e simples navegação à vista. Qual o conceito de Museu Nacional quando se pretende oportunisticamente assim classificar o Museu Monográfico de Conimbriga? Porque foi de supetão convertido em nacional o Museu de Évora, aceitando de bom grado que venham a ser municipalizados museus como o Aberto Sampaio ou o Abade de Baçal? Porque se chega ao ponto de enxovalhar o Conselho Nacional de Cultura, dizendo que as decisões são políticas e já estão tomadas, pouco interessando o que o mesmo venha a propor? Será que uma formulação desastrada em proposta de lei impõe de tal modo baias que obriguem a deixar de pensar, a deixar de reflectir estrategicamente?

Sim, assessores e funcionários de voo baixo, aceitam facilmente as baias, pelo menos à primeira vista. E não deixa de ser espantosa a facilidade com que a sociologia da máquina administrativa do Estado consegue pôr governantes no bolso (yes, minister, Sir Humphrey Appleby is caring for you). Mas não nos peçam que façamos o mesmo.

Os Museus Nacionais, 12 hoje em dia, devem ser instituições com colecções de referência e âmbito territorial nacional, preenchendo cumulativamente algum dos seguintes requisitos: (a) versarem sobre domínios científicos longamente sedimentados e produtores de colecções de museus, isto independentemente da inserção que tenham no Estado central (Arqueologia, Etnologia, Arte Antiga, Arte Contemporânea, Ciências Nasturais, etc.); versarem sobre domínios artísticos ou áreas da vida social que a sociedade contemporânea entende dever privilegiar (Música, Teatro e Dança, Traje…); versarem sobre colecções únicas (Coches) ou domínios especialmente característicos da cultura portuguesa (Azulejo). Pode admitir-se acrescentar a estes critérios, o da especial relevância dos acervos, seja qual for a tutela (mesmo privada, como seria o caso do Museu Gulbenkian). Assim se justifica, e bem, a classificação dos museus Soares dos Reis, Machado de Castro e Grão Vasco. Assim se poderá justificará também o caso do Museu de Évora. Mas, chegados aqui, entramos na questão da regionalização e dos museus regionais, velho projecto político da Primeira República, que mantem em meu entender toda a actualidade. Museus como os de Aveiro, Bragança (Abade de Baçal), Castelo Branco ou Beja deveriam ser assim classificados – e as tutelas deveriam idealmente ser Regiões ou CDDRs, na ausência daquelas.

Ou seja em conclusão: pensemos primeiro, e executemos depois. Não o contrário, como ligeiramente se pretende fazer agora.

 

 

 

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