A cidade genérica

A cidade histórica, que o turismo ao mesmo tempo salva e destrói, está confrontada com factos urbanos inelutáveis.

 A ideia de que é possível, embora difícil, manter o equilíbrio, a harmonia e uma parte significativa da “vida tradicional” (aquilo a que se costuma chamar “identidade”) da cidade histórica na época da mundialização e do turismo de massas é da ordem de uma crença que vai contra as evidências e contra todos os exemplos que se conhecem. Várias são as razões para que tal ideia entre na lista das impossibilidades, mas uma delas tornou-se bem visível mesmo para quem nunca leu uma passagem de A Sociedade do Espectáculo, onde Guy Debord diz que “a organização técnica do consumo [...] levou a cidade a consumir-se a si própria”. Esta autofagia é  fonte de deslumbramento e de magia, é o que garante que “as coisas para ver” não proporcionarão o tédio, mas o divertimento. Aí, tudo se passa, mas nada acontece. Na cidade turística governa de maneira coerciva a lógica da sobreposição recíproca do consumidor e do objecto de consumo. Temos de pensar no fordismo, se quisermos encontrar para este fenómeno uma analogia económica. A ideia de Ford era que os trabalhadores se tornassem os seus clientes, comprando e consumindo os produtos que eles próprios fabricavam. Passa-se hoje com a cidade histórica – essa, que toda a gente quer preservar — o que se passa com a aura da obra de arte: uma e outra existem sempre em estado de desaparecimento.

Ninguém concebeu melhor a etapa culminante deste desaparecimentos do que o grande arquitecto holandês Rem Koolhaas (uma das suas obras é a Casa Da Música, no Porto). Em 1994, ele escreveu um longo texto, entre o ensaio e o manifesto, onde desenvolveu um conceito que teve alguma fortuna em certos sectores, mas ainda não foi pensado até às últimas consequências: o conceito de “cidade genérica”. A “cidade genérica” é uma “substância” urbana proliferante, sem limite, sem centro nem periferia. O modelo da “cidade genérica”, diz Koolhaas, é o aeroporto, o seu habitante é o turista e a sua actividade principal é o shopping. Esta cidade libertou-se de qualquer sujeição a um centro e a uma história, e não tem deveres para com a identidade. A “cidade genérica” é também o que resta depois de vastos pedaços da “cidade urbana” (parece um pleonasmo, mas Rem Koolhaas utiliza-o) passarem para o ciberespaço. O urbanismo supunha sistemas de controle e de domínio dos fenómenos; ora, tal coisa deixa de existir a partir do momento em que a lógica do mercado, por definição, não dá lugar a esse tipo de preocupações. O autor do ensaio sobre a “cidade genérica” mostra-se ao mesmo tempo fascinado pelo crescimento urbano, na Ásia, que ele viu antecipadamente como o centro demográfico e económico do mundo, um coração urbano de escala global.

A “cidade genérica” será ainda uma cidade? E permite ainda que se fale de arquitectura? Não, deve-se falar é de um junkspace, de substâncias urbanas que são como detritos. No final do seu ensaio-manifesto, o arquitecto imagina que o filme da história da cidade está a passar ao contrário, para trás: “O centro esvazia-se, as últimas sombras deslizam para fora do plano [...]. O silêncio torna-se agora mais denso por causa do vazio [...]. Nós respiramos... Acabou. Eis a história da cidade. A cidade já não existe. Agora, podemos deixar a sala”. Rem Koolhaas está a descrever uma catástrofe inelutável? A anunciar, como um profeta do nihilismo, uma cidade onde já não existem zonas de segurança? Não, a sua estratégia consistiu em pensar o mundo e a “cidade genérica” para propor uma arquitectura capaz de se reapropriar das “substâncias urbanas” e de suspender o movimento fatal do junkspace.

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