Nesta Assembleia ouve-se e discute-se – não se vota

Ao público de Assembleia é pedido que assuma o papel de deputado. Enquanto isso, Pedro e Solange partilham histórias e colocam perguntas. Rui Catalão ajuda a eliminar o fosso entre palco e plateia.

Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria

Pedro e Solange são moradores da freguesia de Marvila. Ele vive no Bairro do Armador, ela vem do Bairro dos Alfinetes. Não são actores, não têm qualquer experiência de teatro e pertencem àquela categoria nem-nem que, nos últimos anos, passou a designar quem nem trabalha nem estuda. São duas vozes, dois olhares e dois corpos a quem o dramaturgo e encenador Rui Catalão oferece o palco do Teatro Maria Matos, em Lisboa, de 24 a 26 de Fevereiro, e em quem delega o centro de um espectáculo chamado Assembleia. O público, sentado em duas bancadas que se espelham, ladeia um corredor por onde Pedro e Solange circulam. É naquela língua de palco que fazem perguntas e partilham histórias, que seguem um guião tão rasante às suas vidas que, apesar de polido e coreografado para encaixar numa forma teatral, expõe toda a sua fragilidade e uma verdade – que, talvez, nem tenha consciência de o ser.

A escolha de Pedro e Solange respondeu sobretudo a uma reacção “instintiva” de Rui Catalão perante o desafio lançado pelo Maria Matos para que trabalhasse com a comunidade de Marvila. Seria "fatídico que qualquer pessoa que escolhesse fosse representar o bairro”, pelo que a sua preocupação foi apenas a de não seleccionar “os gajos que vão parar às prisões, os tipos da droga, da criminalidade e tudo o mais” (até porque, acredita, "todas as pessoas têm história"): “Sempre achei isso uma grande farsolice, a típica escolha do quico das avenidas a olhar para o bairro e a interessar-se.” Para reforçar e alimentar clichés, para cumprir com uma agenda pré-estabelecida daqueles que são “os temas dos subúrbios”, Catalão não estava disponível. E como dispositivo para fugir a essa armadilha criou “condições para as pessoas darem uma matéria que é delas e não aquilo que é suposto”. Não controlando os temas escolhidos, passou a estar mais disponível para ouvir e para ficar dependente daquilo que cada um lhe depositasse nas mãos.

Quando na frase anterior se escreve “cada um”, importa explicar que Pedro e Solange foram as duas pessoas a quem Catalão se agarrou a partir de uma série de reuniões que realizou durante meses em bairros de Marvila. A sua proposta inicial de trabalho para o espectáculo que viria a criar para o Teatro Maria Matos passava por “juntar uma comunidade num dado espaço e começar a debater”. Aquilo que queria instigar era a discussão de problemas relacionados com a coabitação, esgravatando propostas que pudessem contribuir para uma melhoria da qualidade de vida a partir da construção de redes informais. “Tinha que ver com uma ideia de auto-governação”, comenta. “Não era uma cena anárquica de acabar com os governos. Tinha que ver com o tipo de coisas que muitas vezes fazemos depender das instituições e do aparelho político – com todo o seu peso administrativo e burocrático – e que reunindo as pessoas interessadas pudesse gerar debate e um compromisso.”

A partir desse ponto, o propósito passava por contrariar um sentimento de isolamento, levar os participantes a encontrarem soluções e criar um grupo que pudesse valer-se nas mais variadas situações. “O reverso disto”, admite Catalão, “é a quantidade de vezes que queremos que nos deixem em paz e as pessoas se metem no assunto.” O exemplo perfeito para aquilo a que chama uma “hiper-politização” de temas de foro pessoal é a discussão pública do aborto, que culminou com o referendo. Rui Catalão diz-se contra o aborto – no sentido em que, em causa própria, não o faria; mas é a favor da descriminalização – no sentido em que, em causa alheia, acha que não deve ter direito a opinar.

As ilhas de Marvila

“Qual foi a primeira vez que te sentiste isolado? Soubeste como pedir ajuda?”. “Qual foi a última vez que quiseste tomar uma decisão sozinho e não te deixaram?”. Estas são algumas das perguntas lançadas na direcção do público, implicando-o no que acontece em palco, tentando deitar por terra qualquer ideia de que entre o palco e a plateia existe um fosso. Mas a verdade é que poucas histórias de isolamento poderão ser tão pungentes quanto aquela que Pedro partilha, respondendo a uma bateria de perguntas de Solange, ao descrever a forma como durante vários anos viveu aterrorizado por um vizinho, com medo de pôr um pé fora de casa, sabendo pouco ou nada desse rapaz que habitava no mesmo prédio e que, portanto, representava uma ameaça constante.

O isolamento está também nos bairros que Rui Catalão visitou e não apenas nas pessoas com quem falou. Catalão chama-lhes “ilhas de Marvila”, falando de territórios que foram “plantados isoladamente e depois isolados uns dos outros pela construção de uma rede de estradas”. No Bairro dos Alfinetes, diz, subsiste “uma lógica de apartheid – pretos de um lado, brancos de outro e ciganos de outro ainda”, enquanto o Bairro do Armador promove um caldeirão cultural que, aos poucos, acredita, foi sedimentando uma coabitação menos propensa à violência e à perpetuação de preconceitos.

Perante todas as questões, o encenador aplica uma mesma postura de propor alternativas, crente de que uma outra forma de olhar para qualquer assunto pode estimular o pensamento e conduzir a soluções mais interessantes. Disso também trata Assembleia, apelando a que o público assuma um papel de deputado, podendo participar activa ou passivamente, e que reflicta sobre como se relacionar com aquelas duas vozes, aqueles dois olhares e aqueles dois corpos que, em palco, se comportam de forma distinta. Ele numa partilha aberta, ela num cepticismo desperto.

Sugerir correcção
Comentar