Um presidente indisciplinado

Trump não consegue manter a ordem à sua volta. Para quem esperava mandar assinando decretos e escrevendo no Twitter, o arranque do mandato foi um choque com a realidade.

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Kevin Lamarque/Reuters

A dias de comemorar o seu primeiro mês de mandato, em que nada correu bem na Casa Branca, o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pediu antena aberta e apresentou-se ao país para, de viva voz e sem intermediários, atestar a normalidade do seu governo e insistir que a Administração "funciona como uma máquina bem oleada". De nada lhe valeu o esforço: horas depois, o homem que escolhera para dirigir o conselho de Segurança Nacional declinou o convite, imediatamente confirmando a narrativa de disfunção, incompetência e caos generalizado que Trump procurara desmentir.

Para quem esperava poder mandar e desmandar no país assinando decretos e escrevendo no Twitter, o arranque do mandato foi um tremendo choque com a realidade. Em quatro semanas, Donald Trump bateu de frente contra todos os poderes e contrapoderes que condicionam, constrangem e limitam a acção presidencial. O seu polémico decreto anti-imigração, de constitucionalidade duvidosa, foi suspenso por decisão judicial. O Presidente do México recusou financiar a construção do muro na fronteira e cancelou a cimeira bilateral entre os dois países. E o Congresso continua sem oferecer uma alternativa para revogar o Obamacare.

Aparentemente mais preocupado com a imagem de si próprio do que com a execução das suas políticas, o Presidente apareceu para criticar todas as notícias que apontam a desorganização e inaptidão política da Administração: na sua opinião só demonstram que é a imprensa que "está totalmente fora de controlo", e não a sua equipa ou a gigantesca burocracia federal que agora dirige.

Não são esses os relatos que chegam aos jornais norte-americanos todos os dias directamente da Casa Branca — o único consolo para Trump é que, como nunca se cansa de assinalar "ninguém acredita no que dizem os jornais".

A disfuncionalidade no círculo mais restrito em torno do Presidente ficou exposta na forma como foi gerida a demissão do conselheiro nacional de segurança, e um dos primeiros e mais fiéis aliados de Trump, o antigo general Michael Flynn. As diferentes — e quase simultâneas — explicações e justificações para a sua saída da Casa Branca, fizeram disparar todos os sinais de alarme. A piorar o quadro, o escândalo levanta a hipótese de uma possível infiltração da Rússia no centro do governo dos EUA — ninguém vai esquecer esta história, de consequências imprevisíveis.

Em desabafos e depoimentos anónimos, funcionários têm pintado um retrato de rivalidades, armadilhas, conflitos e lutas intestinas entre facções com acesso directo à Sala Oval: as equipas do chefe de gabinete, Reince Priebus, do conselheiro Steve Bannon e do genro Jared Kushner. Esse sempre foi o modus operandi de Trump, que gosta de encorajar a rivalidade e promover a competição, para depois recompensar aqueles que se provavam impiedosos com os concorrentes e leais ao chefe.

Mas essa é uma receita que não funciona no governo, onde vários outros interesses estão em jogo — sublinham os comentadores, por exemplo, que o Presidente já devia ter sido aconselhado a parar a sua guerra aos media e ao chamado aparelho de segurança e informação, principalmente os serviços secretos. As constantes fugas de informação, que levam à divulgação de rascunhos de directivas ou detalhes de investigações em curso, demonstram uma realidade que é invulgar para os primeiros dias de uma Administração.

Na última edição, a revista Time (que pôs na capa um Donald Trump impassível enquanto um furacão varre a Sala Oval, com o título Não há nada para ver), descreve um clima de ansiedade e pavor que está a paralisar o trabalho na Casa Branca, com o pessoal a evitar falar ao telefone com receio de possíveis escutas e a recorrer a aplicações que encriptam as mensagens para enviar e-mails que escaparão ao registo público — a palavra de ordem é sobreviver a qualquer tentativa de traição ou retaliação.

"Quase nada acontece na Casa Branca sem complicação ou contradição", resume a Time, enumerando os problemas na aplicação das directivas presidenciais. A confusão extravasa a Casa Branca e estende-se a toda a Administração. Em vários departamentos do governo federal, os cargos de chefia ainda não foram preenchidos — faltam cinco secretários que ainda não foram confirmados pelo Senado, e centenas de dirigentes de topo que nem sequer foram ainda nomeados pelo Presidente.

Mas o exemplo maior de indisciplina é o próprio Presidente. A sua tendência para promover a discórdia e controvérsia, com provocações ou recados no Twitter, que distraem a atenção da sua agenda política, já foi censurada pelo líder da maioria republicana do Senado — Mitch McConnel admitiu ao conservador Weekly Standard que a tentação do Presidente em ignorar ou inventar factos está a dificultar seriamente a missão dos republicanos. Incapaz de controlar os seus ímpetos, Trump também não consegue manter a ordem e a estabilidade na sua órbita. "Depois do ‘no-drama’ Obama, temos o ‘só drama’ Trump", comparava o veterano consultor republicano John Feehery a The New York Times.

O estilo pouco ortodoxo de Trump está a deixar espantados (assustados?) os seus aliados políticos em Washington e os líderes internacionais — amigos ou inimigos dos EUA — que deixaram de saber com o que contar na Casa Branca. Como assinalam os analistas políticos, nada é mais prejudicial para o Presidente do que a actual percepção de que a sua Administração vive sob suspeita, em estado de crise permanente.

"Para já, temos uma Administração sob cerco, comprometida pela abjecta falta de credibilidade do Presidente e dos seus porta-vozes", escrevia em The Washington Post a colunista conservadora Jennifer Rubin, incrédula com o grau de tumulto e de debilidade que compromete a presidência.

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