Mentiras e… mentiras

O Diabo não chegou em Setembro, é verdade, mas estamos ainda muito longe do paraíso. O Diabo pode voltar.

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1. Na semana passada veio-me à memória uma história, já antiga, que sempre me deixou perplexa. Muita gente de direita (incluindo alguns amigos meus) exibia sem complexos a sua admiração por Álvaro Cunhal, com um argumento que era quase sempre o mesmo: a sua enorme coerência. E eu perguntava a mim própria se as pessoas em causa tinham ideia do que lhes aconteceria se o Partido Comunista tivesse conquistado o poder em Portugal. Estávamos em plena Guerra Fria. O destino da burguesia e dos “inimigos do povo” nos regimes comunistas era o que todos sabíamos.
Na quarta-feira passada, pensei que tinha finalmente encontrado a explicação. Na televisão, em directo do Parlamento, Luís Montenegro e Nuno Magalhães, com um ar compungido, diziam que a sonegação de informação aos deputados significava o caminho para o totalitarismo. Leram bem: totalitarismo. Podiam ter falado em autoritarismo, ditadura, fascismo, mas não, foram imediatamente para o mais intolerável de todos os regimes antidemocráticos. Afinal a admiração pela coerência de Álvaro Cunhal estava justificada: provavelmente não tinham a menor ideia do que seria um regime totalitário. A ilusão durou segundos. Nada disto tem que ver com o actual Partido Comunista. O comunismo como ideologia foi praticamente varrido da face da terra. As sociedades onde dominou durante décadas ainda hoje sofrem as consequências da incalculável destruição humana que provocou. O PCP mantem no programa a sua fidelidade ao marxismo-leninismo, porventura porque não tem nada à mão para substituir a sua ideologia fundadora. Mudou de natureza. É um partido de protesto que vive da sua implantação sindical, sobretudo na defesa dos que já estão bastante bem (empresas públicas e funcionários públicos). Já perdeu boa parte da sua capacidade mobilizadora. Está isolado internacionalmente. Levou tempo, mas percebeu que se tinha esgotado há muito a estratégia de fazer do PS o “inimigo principal” e que era preciso provar aos simpatizantes que podia ter alguma influência na governação. Sobre o totalitarismo estamos conversados. O que me causou maior impressão foi ninguém reagir (que eu visse) a esta declaração verdadeiramente extraordinária, de tal modo estamos todos obcecados com as “mentiras” de Mário Centeno ou, no caso, a barreira que os partidos que apoiam o Governo puseram às novas exigências da oposição na comissão parlamentar de inquérito.

2. Não me interpretem mal. Em democracia há princípios formais que devem ser preservados e um deles é precisamente a fiscalização do comportamento dos governos no Parlamento. Em teoria, as comissões parlamentares de inquérito servem para isso mesmo. Formalmente, a exigência de acesso à totalidade da troca de mensagens entre Centeno e Domingues pode ser legítima. Mas isso não impede que se faça a sua leitura política. Montenegro e Magalhães não mentiram, porque expressaram uma opinião e as opiniões são livres de ser mentirosas ou verdadeiras. Mas o que disseram é muito mais grave do que a forma como Mário Centeno geriu as negociações com a primeira equipa de gestores da Caixa. É uma gigantesca mentira, ou, se se quiser, um derradeiro recurso de quem não tem mais nada para dizer e que viu nesta “deixa” que o Governo lhes ofereceu de mão beijada um osso que não deixarão de roer enquanto puderem. Seguiu-se a demissão, muito pensada segundo o próprio, de Matos Correia. Amanhã surgirá outra coisa qualquer. Passos Coelho preferiu recorrer a uma meia-verdade desde o início do processo, para deitar abaixo a solução do Governo. Disse ele que os gestores da Caixa, que é uma empresa pública, não podem ganhar acima do primeiro-ministro. É o que a lei manda e daí a necessidade de alterar a lei para permitir uma excepção. Passos sabe que uma gestão profissional da Caixa tem de ser paga de acordo com aquilo que é comum entre os pares. O que ele está a dizer, sem dizer, é que tinha razão quando quis privatizar a Caixa, coisa que não fez graças à oposição de Paulo Portas. Não é mentira. É apenas meia-verdade. Centeno deu o flanco, porque não deve ter muito jeito para mentir. Costa devia ter atalhado o assunto mais cedo.

3. O segundo episódio desta história é que ela serve também para desviar a atenção da onda de boas notícias que chegaram na semana passada e que colocam o PSD numa posição bastante difícil. Não porque não haja múltiplos reparos a fazer sobre elas, mas porque elas deitam por terra a única “estratégia” que tinha: apostar no quanto pior melhor, provavelmente convictos de que os compromissos com Bruxelas nunca poderiam ser cumpridos pelo actual Governo. Nos dias em que toda a gente se indignou contra a mentira, ficou a saber-se que o défice do Orçamento ficará abaixo de 2,1%, o crescimento da economia acelerou-se no último trimestre do ano passado (1,9%), graças ao aumento do consumo interno, mas também ao bom comportamento das exportações. O desemprego desceu com a criação líquida de empregos. A Comissão prevê para este ano e para o próximo uma descida contínua do défice e um crescimento moderado da economia, ao nível da zona euro ou ligeiramente superior. O superavit primário registado em 2016 foi o maior da zona euro. A crise do sistema financeiro vai sendo progressivamente resolvida, incluindo a CGD. Bruxelas vai levantar em Maio o procedimento por défice excessivo, aumentando a margem de manobra do Governo e, sobretudo, a sua credibilidade externa perante os parceiros e perante os mercados. No Eurogrupo, onde tudo isto se discute, este ganho de credibilidade tem a cara de Mário Centeno. O PSD nunca acreditou que fosse possível e definiu a sua estratégia em função disso. E agora não sabe como reagir.

4. O Diabo não chegou em Setembro, é verdade, mas estamos ainda muito longe do paraíso, e isso não deixaria obrigatoriamente o PSD sem discurso, se conseguisse sair do seu estado de “negação”. O Diabo pode voltar. Não amanhã ou depois de amanhã, mas no médio/longo prazo, o que não é conveniente esquecer. Se a zona euro não criar os mecanismos que garantam que é vista pelos mercados como um todo (como aconteceu até à crise), com um orçamento próprio e a partilha de alguns riscos, qualquer choque assimétrico pode abrir uma nova crise com a dimensão daquela que ainda não resolvemos totalmente. E sobre isso apenas temos uma certeza: em idênticas condições não haverá resgates, nem apoios, nem o que quer que seja. O euro, na sua forma actual, dificilmente resistirá. A manutenção de uma zona euro de ganhadores e perdedores tem os dias contados porque os (eternos) perdedores terão de dar explicações aos seus eleitores, que estes provavelmente não aceitarão. Se acrescentarmos o progresso quase imparável dos movimentos antieuropeus, populistas e xenófobos na generalidade dos países europeus (Portugal não está imune) e a total imprevisibilidade internacional, económica e política, criada pela eleição de Trump, o desafio que a Europa tem pela frente para preservar a sua unidade e a sua democracia é muito, mas muito, exigente. Há imenso para discutir para lá do Diabo e da mentira: da questão do crescimento da economia, a nossa e a dos nossos parceiros da zona euro, aquilo que a Europa quer ser no futuro, que a eleição de Trump tornou muito mais urgente. Mas isso dá muito trabalho e pode não render tantas manchetes.

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