Caso CGD: os três problemas do "erro de percepção mútuo"

Cruzando todos os dados públicos, entre documentos, declarações, comunicados de imprensa e audições, subsistem contradições de parte a parte na história das condições dadas a António Domingues para este ser presidente da CGD.

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Centeno diz que o acordo não incluía a excepção, Domingues garante que sim Nuno Ferreira Santos

Havia ou não acordo com António Domingues para isentar a administração da Caixa da entrega das declarações de patrimínio no TC? Esta semana, quatro meses depois da polémica começar, o ministro das Finanças veio assumir um “erro de percepção mútuo”. E soube-se que o Presidente da República teve um papel activo neste processo, ainda antes da promulgação do Estatuto do Gestor Público, em junho passado.

À luz das novas afirmações, o PÚBLICO revisitou todos os dados públicos sobre o assunto. Cruzando as declarações dos responsáveis, os comunicados de imprensa, as audições no Parlamento e ainda os documentos que António Domingues fez chegar à Assembleia da República, tiram-se várias conclusões e permanecem dúvidas: não está escrito em nenhum documento conhecido, nem de Domingues nem do Ministério, o pedido ou o compromisso específico sobre a isenção da entrega de declarações ao TC; mas esse compromisso foi assumido em vários momentos pelo Governo (sempre nas Finanças). Sobram também as contradições entre os vários intervenientes do Governo e mudanças de discurso em quatro fases diferentes.

No início era a defesa da medida

Mário Centeno e Mourinho Félix negociaram com António Domingues as condições para este aceitar o cargo entre Março e Junho. Do resultado destas conversas e das trocas de documentos há duas versões: Centeno diz agora que o acordo não incluía a excepção, Domingues que sim. Os factos mostram que esse compromisso nunca foi posto por escrito nas cartas e emails enviados por Domingues, mas foi, num primeiro momento assumido e até defendido pelas Finanças.

No dia 23 de Outubro, Marques Mendes lança a dúvida se tinha ou não tinha sido um lapso que a alteração legislativa para excluir os administradores da CGD do Estatuto do Gestor Público (EGP) tivesse como consequência a isenção da entrega de declarações. E a primeira resposta surge no dia 25 pelo Ministério das Finanças, em resposta a perguntas de jornalistas, onde assume que não só “não foi um lapso”, como acrescentava que esse “escrutínio já era feito” e que essa informação era revelada ao accionista, neste caso, o Estado.

É preciso referir que estas declarações de património são as únicas que são públicas. A tese defendida então pelas Finanças era de que a CGD já estava sujeita a um conjunto de obrigações “mais profundo”, como as obrigações junto do BCE, e que “não faz sentido estar sujeita às duas coisas”. A parte do escrutínio público seria também ela rejeitada pelos responsáveis do Governo.

No dia seguinte, o secretário de Estado diz ao Diário de Notícias que “não haverá acesso do público em geral às declarações de rendimentos. Será um processo entre o gestor e o regulador”. E a tese foi de novo corroborada pelo ministro, no dia 27 de Outubro. Na primeira vez em que fala da polémica, Centeno diz que “o accionista Estado tem conhecimento perfeito da matéria que está em cima da mesa, o supervisor também. Os portugueses têm-no [o escrutínio] por via do Governo, do Estado, que os representa nesta dimensão”.

Aqui começa a primeira contradição. Se o assunto não tinha sido fruto de um compromisso, porque o assumiu o Ministério, o secretário de Estado e o ministro? E por que defenderam que era suficiente o controlo do accionista Estado? Se o assunto tinha sido negociado, por que Domingues não o colocou por escrito nas mais de 100 páginas com alterações legislativas e explicativas do que ficou acordado que trocou com o Ministério?

A decisão é do TC e dos accionistas

António Costa fala no mesmo dia que Mário Centeno, mas nem por isso dizem a mesma coisa. Aliás, durante dois dias houve notícias que davam conta das contradições entre o que dizia o PS (pela voz de Carlos César) e o que dizia o ministro. E o que disse o primeiro-ministro? Sem dar uma certeza sobre a necessidade de entrega das declarações, remeteu uma decisão para a interpretação a fixar pelo TC – “Compete ao Tribunal Constitucional apreciar se são devidas” – e para os próprios administradores da CGD. E termina dizendo: "Se há valores legais a cumprir, há que cumpri-los”.

É esta leitura de Costa que prevalece, nesta fase, até às notificações do TC e ao comunicado do Presidente da República sobre o tema. Aliás, a interpretação que Marcelo Rebelo de Sousa faz é que “a obrigação de declaração vincula a administração da CGD” , mas que cabe ao TC dizer qual a sua interpretação. E ainda acrescenta: se esta for contrária, então podem os deputados “clarificar o sentido legal também por via legislativa”.

Novas dúvidas. Se não havia acordo, porque não o negou logo António Costa? E se a interpretação do Governo era a de que a lei 4/83, a que obriga à entrega, permanecia em vigor mesmo apesar da alteração ao EGP, porque não o assumiu e decidiu esperar pelo TC? Já quanto ao Presidente, se este era um assunto que queria ver garantido, porque só dá a sua interpretação sobre o tema no comunicado a 4 de Novembro? Se a matéria foi discutida aquando da promulgação, porque não ficou explícito na sua nota (ou no documento) que a obrigação existia?

Caso encerrado, parte 1

“O TC decidiu, está decidido”, diz o Presidente ao PÚBLICO depois de os juízes começarem a notificar os gestores para a entrega das declarações, fixando a interpretação que a alteração ao EGP não afectava a vigência da lei 4/83. No mesmo dia, nota-se que a relação entre o primeiro-ministro e Domingues já não existe. Diz Costa que “ninguém está acima da lei”.

Nestes mesmos dias, Domingues faz chegar uma carta ao ministro das Finanças onde fala pela primeira vez do compromisso sobre a isenção, dizendo que “foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD”. Nessa mesma carta, só conhecida a semana passada, diz que respeitará a lei, mas que haverá outros membros que não aceitarão as condições e apresentarão a demissão. Na resposta, Centeno não fala sobre o compromisso, nem para o desmentir nem para o confirmar, diz apenas que “sendo uma decisão do foro individual” nada tem “a dizer sobre isso”.

Não foram só os restantes administradores a sair. Domingues bate com a porta a 27 de Novembro, ao fim de cinco semanas de polémica e é a partir da saída que o tabuleiro vira outra vez.

Os emails, as cartas e os SMS

A intenção de Domingues era a de não entregar as declarações. Disse-o com todas as letras na audição de 4 de Janeiro. Porque não queria ver as informações “espalhadas por tablóides” e defendia que “uma coisa são as declarações de património que ficam depositadas na entidade fiscalizadora, outra coisa é irem para os jornais”. É nesta audição que Domingues admite também que “o Governo deixou de ter condições políticas” para manter as condições.

Na parte legal, explicou que a interpretação que fazia era que essa excepção “decorria da não aplicação do estatuto” do Gestor Público. Ora, foi essa foi sempre uma dúvida que esteve em cima da mesa: a diferença entre a interpretação daqueles que achavam que retirando a CGD do EGP deixaria de se aplicar a lei de 83 e aqueles que não, como viria a ser fixado pelo TC.

Centeno só volta a falar na célebre conferência de imprensa desta segunda-feira, em que reafirmou que não havia acordo para aquela excepção e que pode ter havido o tal “erro de percepção mútuo” sobre o combinado. Explica também o comunicado das Finanças dizendo que a questão do lapso se devia a um "conjunto muito vasto de obrigações declarativas" que já era cumprido.

Restam outras interrogações: havendo dúvidas legais sobre a interpretação, porque não ficaram asseguradas nas negociações por Domingues? E se o Governo considerava que havia essa dúvida, mas não queria mesmo isentar os gestores, porque não o fez saber quando a polémica estalou e em vez disso, na primeira reacção, a defende? 

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