Caso Domingues: alteração à lei não mudou nada para o TC

Tribunal Constitucional divulgou acórdão 16 dias depois da decisão. Para o TC, uma coisa é o estatuto do gestor público e outra o seu conceito. Declaração de rendimentos é obrigatória para todos os gestores nomeados pelo Estado.

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Tribunal publica acórdão sobre António Domingues Enric Vives-Rubio

Uma coisa é o Estatuto do Gestor Público e outra o conceito de gestor público para efeitos de controlo de riqueza. Esse é o cerne da decisão do Tribunal Constitucional (TC) para considerar que os ex-administradores da Caixa Geral de Depósitos estavam obrigados à apresentação das declarações de património e rendimento, e não dispensados pela alteração ao Estatuto do Gestor Público que o Governo fez no Verão à medida da equipa liderada por António Domingues e a pedido deste, com os seus advogados a escolherem a redacção da lei.

 “A referência, pela Lei do Controle Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos, ao conceito de gestor público nada tem que ver com a sujeição dos indivíduos abrangidos por esse conceito ao EGP e aos direitos e deveres nele previstos – o que é, além do mais, demonstrado pelo sentido das revisões a que o regime constante daquele primeiro diploma foi sendo sucessivamente sujeito”, lê-se no acórdão publicado nesta sexta-feira, 16 dias depois de a decisão ter sido tomada.

Num longo texto, os juízes do Palácio Ratton sublinham que o entendimento da lei 4/83, que foi sendo alterada ao longo do tempo – e sobretudo depois da alteração sofrida em 1995, que todos os nomeados pelo Estado em empresas onde o Estado tivesse participação maioritária deveriam estar sujeitos àquela obrigação de entrega das declarações.  

“Face aos imperativos de transparência que constituem a razão justificativa da lei, todos os administradores designados pelo Estado ou outras entidades públicas nas empresas em que detêm participações (independentemente da natureza jurídica da empresa e de estar em causa a totalidade, a maioria ou uma minoria do capital) deveriam ser por ela abrangidos. São estas as razões que relevam: a participação e a designação públicas. É irrelevante, para os efeitos de transparência da Lei n.º 4/83, se aos indivíduos em questão se aplica ou não o EGP”, afirma-se no acórdão.

Nove dos 11 administradores da equipa de António Domingues – incluindo o próprio – contestaram a notificação do TC de que foram alvo em Novembro para apresentarem as suas declarações de rendimento, ainda que seis o tenham feito mesmo antes do recurso. O próprio Domingues entregou a declaração, mas juntamente com um pedido de sigilo sobre a mesma. Este pedido, no entanto, ainda não foi apreciado, motivo pelo qual a sua declaração se mantém em vigor até à decisão do TC. 

No último sábado, o PÚBLICO recordou que o acórdão estava aprovado em plenário desde o dia 1 de Fevereiro, mas continuava à espera de publicação no site do tribunal, aguardando-se o decorrer do prazo (dez dias) para o trânsito em julgado da decisão, bem como as notificações aos visados. 

"Insustentável subversão valorativa"

Os juízes do TC não encontraram no decreto-lei que alterou o Estatuto do Gestor Público nenhum indício de que o Governo pretendia isentar os administradores da CGD da declaração de rendimentos. Noutra linha argumentativa do acórdão, é isso que se explica: “Acresce não haver qualquer razão para supor que o Decreto-Lei n.º 39/2016 procurou modificar esse estado de coisas. […] Considerou-se, portanto, que as instituições de crédito públicas abrangidas (…) seriam mais competitivas se os seus administradores não estivessem sujeitos às obrigações e aos constrangimentos do mesmo EGP”.

Mas, acrescentam: “Independentemente da bondade e razoabilidade de tal justificação, (…) a finalidade da excepção à aplicação do EGP nada tem que ver com a sujeição dos administradores em questão aos deveres impostos pela Lei n.º 4/83”. Até porque, constata-se que do Estatuto do Gestor Público “constam diversas obrigações, mas entre estas não se conta nenhuma que se relacione de alguma forma com a declaração de património e rendimentos prevista no artigo 1.º da Lei n.º 4/83”.

Portanto, a alteração legislativa feita no Verão não mudou nada no que diz respeito às “exigências do imperativo de transparência na gestão de recursos públicos que constitui o desiderato do regime jurídico de controle público da riqueza”. Imperativo esse, sublinham os juízes constitucionais, “tem de ser compreendido em termos muito amplos, segundo a ideia de que a ‘obrigação de declarar o património, as actividades e funções privadas e os interesses particulares dos titulares de cargos públicos deriva da vontade de moralizar e melhorar a transparência da vida pública’, sendo modelada precisamente em função do ‘levantamento dos casos em que os interesses privados podem afectar a actuação dos homens públicos’”.

Uma interpretação diferente seria, de acordo com o acórdão “introduziria no ordenamento jurídico português relativo aos valores e aos imperativos de transparência uma insustentável subversão valorativa” da lei 4/83. “Os elementos histórico – o progressivo alargamento do elenco das entidades abrangidas pela Lei n.º 4/83 – e sistemático/teleológico […] tendo em conta as finalidades prosseguidas pela lei em questão – imporiam aqui sempre outra interpretação do conceito de gestor público. Este poderá ser mais ou menos abrangente, mas deverá incluir, no mínimo, todos os gestores de empresas públicas”, conclui-se. 

O acórdão foi aprovado por unanimidade e mereceu uma única declaração de voto, cujo sentido é reforçar ainda mais a decisão tomada. Nela, o juiz João Pedro Caupers sublinha que nenhuma das obrigações referidas no preâmbulo do decreto-lei 39/2016 tem o objectivo de transparência da lei 4/83. Como explica, o Mecanismo Europeu de Supervisão bancária, que os interessados invocam também no recurso, “não faz grande sentido” pois aquele apenas abrange “as políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito”.

“Ora, se a necessidade de transparência relativa a património e rendimentos pode contender, de alguma forma, com a supervisão, tal apenas sucede com a chamada supervisão comportamental, que não é objecto específico de regulamentação europeia”, escreve o juiz. Que conclui que “esta circunstância reforça, evidentemente, o sentido da decisão do Tribunal”.

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