A paz na Síria exige verdade e responsabilização ao Governo de Assad

A ONU tem de levar a cabo uma investigação independente aos potenciais crimes de guerra e contra a humanidade cometidos em Saydnaya e exigir o acesso de observadores independentes aos locais de detenção no país.

Em mais de um ano de trabalho de investigação, a Amnistia Internacional documentou atrocidades, enforcamentos em larga escala e uma política de extermínio na Prisão militar de Saydnaya, na Síria, entre 2011 e 2015. Estas práticas visaram sobretudo civis vistos como opositores ao Governo do Presidente Bashar al-Assad, e com autorização ao mais alto nível das autoridades do país.

Al-Assad apressou-se, em entrevista à Yahoo News, a desvalorizar as descobertas documentadas pela Amnistia Internacional no relatório Human slaughterhouse: Mass hangings and extermination at Saydnaya Prison, Syria e tentou repetidamente desacreditar essas descobertas, atirando com o chavão, agora em moda, de “notícias falsas”. Mas admitiu, também nessa entrevista, que não visitou a Prisão de Saydnaya e não forneceu nenhuma informação sobre a “verdadeira” situação no complexo prisional sírio. O Presidente Assad reconheceu ainda que são feitas execuções na Síria, mas não avançou detalhes sobre o número de execuções em Saydnaya – nem, aliás, em qualquer outro local de detenção.

Se o Presidente sírio nada tem a esconder sobre o que se passa em Saydnaya e nas outras prisões da Síria, deve permitir quanto antes o acesso de observadores internacionais. E tem também de revelar a verdade sobre o número de execuções que são feitas, sem nenhumas reservas. As descobertas documentadas neste relatório foram extensivamente investigadas pela Amnistia Internacional, organização de direitos humanos com expressão global e mais de sete milhões de apoiantes no mundo. Por muito incómodas que elas sejam para o Governo sírio, tentar contradizê-las com o chavão de “notícias falsas” é menos do que o mínimo aceitável.

É também revelador que o Ministério russo dos Negócios Estrangeiros tenha vindo ecoar as críticas de Assad para tentar desacreditar esta investigação, sem avançar nenhuma informação sustentada que a contrariasse. Em vez de prosseguirem com tentativas equivocadas para questionar a veracidade do que a Amnistia Internacional documentou, as autoridades russas deviam usar a sua muito significativa influência sobre o Governo de Assad para pôr fim a estas atrocidades.

Os investigadores da Amnistia Internacional entrevistaram 84 testemunhas, incluindo antigos guardas-prisionais e responsáveis em Saydnaya, ex-detidos, juízes e advogados, assim como peritos sírios e internacionais sobre as práticas e políticas de detenção na Síria. Investigámos ao longo de mais de um ano e a metodologia com a qual calculámos o número de enforcamentos em Saydnaya desde 2011 – de pelo menos 13 000 pessoas em cinco anos – é meticulosamente descrita no relatório.

As atrocidades reportadas pelas testemunhas são perturbantes: detidos levados às dezenas, a meio da noite e em segredo total, frequentemente ao engano, para o cadafalso onde são enforcados minutos depois de serem informados que vão ser executados. Todas as semanas este horror era repetido uma a duas vezes. Largos números de detidos são mortos com outras táticas de extermínio, em que se incluem a tortura repetida e a privação sistemática de alimentos, de água, de medicamentos e de cuidados clínicos.

Nenhum dos detidos condenados a enforcamento na Prisão de Saydnaya passou sequer por algo que se pareça com um julgamento a sério. Os procedimentos, no chamado Tribunal Militar de Campo, não duram mais do que um ou dois minutos. São arbitrários e sumários. Um dos juízes entrevistados descreveu estes “julgamentos” como à margem das regras do sistema legal da Síria: “O juiz pergunta o nome ao detido e se cometeu o crime. Independentemente de a resposta ser sim ou não, será condenado... Este tribunal não tem nada a ver com o Estado de direito. Não é um tribunal.”

A paz é um caminho longo de reparação e exige verdade e responsabilização. A comunidade internacional não pode ignorar o que a Amnistia Internacional descobriu em Saydnaya. Com a nova ronda de conversações de paz para a Síria iminente, em Genebra, pôr fim a estas atrocidades tem de estar na agenda das discussões. A Rússia e o Irão, os mais próximos aliados do Governo sírio, têm de exercer pressão para que estas políticas de detenção assassinas acabem. E as Nações Unidas têm de levar a cabo uma investigação independente aos potenciais crimes de guerra e contra a humanidade cometidos em Saydnaya e exigir o acesso de observadores independentes a todos os locais de detenção no país.

Para que o processo de paz na Síria seja eficaz, tem de ser acautelada a segurança de todas as pessoas – quer estejam em liberdade ou presas, quer sejam culpadas ou inocentes. Numa guerra todos são culpados e, certamente, todos são vítimas. Por isso, não estão em causa as razões, as agendas ou as políticas que levaram ao conflito e o alimentaram. Está em causa – hoje e agora – a nossa humanidade e o direito inalienável à paz, à verdade, à reconciliação e à justiça para tantos milhões de vidas que foram, são ainda e sempre, as vítimas de uma guerra que não causaram.

Estas vidas, ceifadas em Saydnaya de forma infame, merecem a paz.

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