Duquesa (não) é só um gajo que escreve canções

Ao imaculado e luminoso homónimo álbum de estreia segue-se o tocante, mais negro e reflexivo, Norte Litoral. Duquesa, alter-ego de Nuno Rodrigues, dos Glockenwise, a confirmar-se um exímio (e preguiçoso, diz ele) compositor de canções.

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Duquesa é Nuno Rodrigues, vocalista e guitarrista dos distintos rock’n’rollers barcelenses chamados Glockenwise, aqui no seu alter-ego no feminino FOTO: Renato Cruz Santos

A primeira surpresa é o português que ouvimos a Duquesa. Duquesa que é Nuno Rodrigues, vocalista e guitarrista desses distintos rock’n’rollers barcelenses chamados Glockenwise que nos apresentou o alter-ego no feminino num imaculado álbum homónimo, editado em 2014, todo ele sol pop e um coração a bater feliz sob o calor do Verão. Duquesa regressou com Norte Litoral e regressou bilingue, juntando ao inglês de sempre o português do tema título, no fim, e de Afinal, no início de tudo: “Sou verde e ancestral, como o meu norte litoral / São vinte e cinco em mim, haverá outro assim? / Eu sei lá, eu sei lá”.

Duquesa é ainda o das canções imaculadas, ainda que agora surjam nelas sintetizadores nocturnos, um solo de saxofone, todo ele classe, em Better men, o romantismo lânguido de Mac DeMarco ou marcas na produção de visitas à década de 1980. Norte Litoral é um álbum de viagem interior, de questionamento sobre a vida e o amor que a vida nos trouxe, de olhar reflexivo sobre a paisagem emocional que nos habita, da paisagem real que o enformou - Norte litoral, a canção, é, nesse sentido, uma preciosidade rara, de uma profundidade poética e de uma força evocativa a que é impossível ficar indiferente. Falamos disto com o músico nascido em Barcelos, hoje habitante do Porto, e ele explica que tudo nasce, na verdade, de uma tendência para a preguiça impossível de controlar. Se assim é, abençoada seja esta lazeira de Duquesa - a ver em palco dia 25 de Fevereiro, no gnration, em Braga, a 23 de Março no Passos Manuel, no Porto, e a 24 no Musicbox, em Lisboa.

Em Norte Litoral, a luz solar intensa de Duquesa ganhou outras sombras e outra densidade e o português surgiu agora entre o inglês. O disco representa um meio caminho para uma transformação que se completará mais tarde?
Isso é um mistério tão grande para si como para mim. Há uma coisa que me chateia, que é a primeira e a última canção serem em português. Dá mesmo o ar de ser planeado, e não foi. As canções estão no lugar em que fazia mais sentido por uma questão de ritmo. Não tenho qualquer programa com Duquesa, ao contrário de Glockenwise, que têm um programa, uma estética e metas definidas que tentamos cumprir. O calendário Duquesa é o meu calendário pessoal e eu não vivo a personagem Duquesa da mesma forma que viveria se olhasse para mim e me identificasse como um cantautor. Imagino que o Éme ou o Luís Severo programem a vida deles de acordo com a identidade que criaram e com a escolha que fizeram. Eu sou um gajo que escreve canções e de vez em quando compilo-as naquilo que se pode chamar um disco.

Este disco surge após ter tomado a decisão de viver exclusivamente da música e depois de, com a edição de Duquesa, com a boa recepção que esse disco teve e os vários concertos que proporcionou, ter percebido que havia muitos a apreciá-lo e a querer ouvi-lo. Isso terá tido a sua influência quando um segundo álbum começa a nascer.
Quem gravou o disco comigo [João Rafael Ferreira, também dos Glockenwise, guitarra; André Simão, baixo; Cláudio Tavares, bateria] sabe o quão pouco dedicado sou e percebe que tenho uns níveis de preguiça gigantes. Isto é o meu ganha-pão e não tenho outro que não seja o de dar concertos e afins. Agora decidi dar uma hipótese à advocacia, mas não me parece que vá ser a minha profissão genuína para sempre, portanto, vou continuar a olhar para a música como o meu ganha-pão. Mas as pessoas que trabalharam comigo sabem que as coisas em Duquesa nascem de forma espontânea. O que pode ter mudado é que passei os últimos dois anos a dar corpo à personagem que é Duquesa. Fiquei a saber melhor quem era, que pretensões tinha, qual a sua maneira de estar. Porque no fundo é uma persona que criei e que é ultra-sensível, andrógina, que fala baixinho e que não conta piadas, ao contrário do Nuno dos Glockenwise, que fala alto, berra e conta piadas. No que toca às canções, o processo é o mesmo para tudo o que faço com a música. Um bocado lento, um bocado preguiçoso e estupidamente espontâneo. O João [Brandão, produtor] goza comigo: ‘não sei se gosto do teu método de trabalho ou da total falta dele’. Todas as letras deste disco foram escritas no estúdio, minutos antes de gravar. Por isso é que são lineares, muito emocionais, meio abstractas. Não há uma narrativa programada, é um discorrer do pensamento que está a ocorrer naquele momento.

Heat (2015), dos Glockenwise, é o álbum mais negro da banda, marcado pelas dúvidas e ansiedades da chegada definitiva à idade adulta. O mesmo acontece neste Norte Litoral. O Nuno Rodrigues dos Glockenwise e o Nuno que é Duquesa podem ter existências paralelas, mas encontram-se.
As motivações são diferentes, porque em Glockenwise não me arrogaria a falar das coisas só por mim. O Heat é um disco negro e tenho a certeza que o próximo será ainda mais. Aí o catalisador é algum cansaço de fazer coisas tão upbeat e tão eléctricas e alguma vontade de deixar para trás ideias mais romântico-adolescentes e partir para lugares que não tínhamos tido oportunidade de visitar. A Duquesa aconteceu-lhe um pouco isso do ponto de vista emocional. Os temas mais concretos de que falo em Glockenwise, que têm a ver com experiências quotidianas de falhanço, têm paralelo em espaços também emocionais. Alguma insegurança, algum misantropismo. Não gosto de me levar muito a sério, mas isso não quer dizer que só escreva palhaçada ou coisas giras. Há uma diferença entre levares-te a sério ou tratares as coisas com seriedade. O que dá bona fide a uma peça não é o quão carrancudo tu consegues ser, é a peça. Não há muito mais que a própria peça.

Em Duquesa tinha uma canção, Abade Nation, que era celebração da terra em que cresceu, Abade de Neiva (freguesia de Barcelos). Aqui acontece o mesmo, num espaço mais alargado, em Norte litoral, que é canção poética e dramaticamente mais forte. Cantá-la na língua que fala, nesta canção específica, que fala de uma realidade específica, teve influência nisso? Parece-nos que uma ode ao “wet granite” não teria o mesmo impacto.
Acho que há uma diferença física, primeiro, que é o facto de cantar em português tornar o timbre e a colocação de voz diferente. É mesmo uma coisa física. Depois há o aspecto temático. Penso em português de forma diferente do que penso em inglês. Ao sentir as palavras de forma diferente, também estou a sentir as canções de forma diferente. A carga emocional que daria à Afinal se fizesse uma tradução literal, em inglês, daquilo que queria dizer em português, seria diferente. Quer na forma como canto, quer na forma como a sinto. E percebi que, se calhar, há ali lugar para outra pessoa que não é o Duquesa que cantava em inglês. Por isso é que o disco é um pouco estranho. Está balizado por uma pessoa que não é o Duquesa que está nas outras cinco canções.

Norte litoral tem sido canção muito partilhada, tem tocado de forma particular quem conhece profundamente as paisagens minhotas ou durienses que ali canta. Surpreendeu-o essa reacção?
Eu achava que haveria pessoas que se iriam identificar, como eu me identifico, mas aquela canção não é uma canção de elogio. É contemplativa daquilo que me rodeia, não só na esfera física, mas também emocional. Mas há pessoas que conhecem essa realidade e que, se calhar, por já não conviverem tanto com ela, podem ficar agradadas por alguém lhes falar dela desta forma poética. Dá uma achega no coração. É muitas vezes sem querer que os artistas dão voz a alguns aspectos da vida emocional das pessoas que elas mesmas não conseguem verbalizar bem. Nunca tinha pensado nisso e fiquei muito contente. Mas reparei noutro aspecto interessante. Tenho amigos na Galiza que me disseram que essa música teve muitas partilhas lá, porque se identificaram muito - olham muito para o norte de Portugal, para o Minho e para o Porto, como extensões da cultura deles. E hoje até recebi um convite para ir tocar a Santiago de Compostela, o que achei curioso. O Norte Litoral não é só meu e dos que aqui estão. Há muitos nortes litorais por aí fora.

Uma marca estética do álbum é, aqui e ali, o piscar de olho ao som mais saturado e compacto dos anos 1980, algo que também começou a aflorar no último disco dos Glockenwise. Tem andado a mergulhar nas discografias dessa época?
Tem essas referências, como outras completamente distintas, mas há realmente ali uma nota de anos 1980, principalmente na Shape and Size ou na Myrna. Nasci em 1990 e a primeira música com que contactei foi a do final dos anos 1990 e de inícios dos anos 2000, que não representou propriamente o zénite da cultura humana. Se calhar também não foi o nadir, mas andou lá perto. Enquanto adolescente, ou ouvia a música dos anos 1990, ou a que se estava a fazer naquele momento, que ia buscar muito aos anos 1960 e aos 1990. Pelo meio ficavam os setentas, o kraut e o psicadelismo que ainda não estavam na moda como agora. Os oitentas nunca me tinham chegado. Foi muito tarde que me chegaram coisas de que gosto imenso e pelas quais tenho imensa admiração, como os Smiths, que não conhecia, e mesmo outras coisas que meto na mesma gaveta quando falo com pessoas que viveram a década, o que, para elas, é como se cometesse sacrilégio. Por exemplo, estou a falar dos The Fall e digo que também há ali umas canções dos Spandau Ballet de que gosto muito. “Spandau Ballet? Eh pá, mas isso é como Backstreet Boys!”. Tenho demasiada distância da década para perceber as tendências do que é cool ou não. É fixe porque observo tudo sem filtro e eu é que decido o que é bom e o que não é. Mas os sons dessa década são melodramáticos e ficam bem em Duquesa. Além disso, há muitos artistas hoje em dia de que gosto que fazem discos completamente anos 1980. Estou a lembrar-me do Pom Pom, do Ariel Pink. Não podia ser mais anos 1980 e ele sabe fazê-lo na perfeição. É um artista inacreditável.

Ainda assim, essa marca sonora surge nas soluções de produção. Sob elas, está o mesmo compositor que conhecíamos e que nos dizia ter gasto a sua cópia do All Things Must Pass de tanto o ouvir. Closed on Sundays tem os sintetizadores e o Rhodes, mas a melodia podia ser de George Harrison.
A forma é o mais importante. A matéria é aquilo que vais acrescentando com o que te apetecer. A única pena que tenho é de não ser um artista verdadeiramente vanguardista. Gostava de ser, mas também não me esforço, nem me ponho nessa posição. Gosto de escrever as canções que escrevo e de lhes dar as roupagens que dou, sem grande esforço. Nunca irei ser o artista que gostava de ser nos meus sonhos. Nunca vou ser um gajo absolutamente vanguardista, nunca vou ser mencionado por outros artistas como uma influência importante, mas há algo que, apesar de tudo, me dá gosto. Eu faço exactamente aquilo que me apetece e o disco é uma mixtape de todas essas vontades. ‘Vai uma balada tipo Bridge over troubled water, de Simon & Garfunkel? Vai e é já’. ‘Agora vão os Smiths? Vão e é já’. Não tenho qualquer compromisso com uma agenda estética nem com nada que se pareça. Isso é bom. Depois saem discos assim, meio malucos como este.

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