A consagração da patranha

Se o Governo cai tão facilmente na tentação de torpedear a verdade num caso no qual só falta uma assinatura, o que fará na penumbra dos bastidores em negócios que não sequer sabemos que existem?

Anda por aí meio mundo enfadado com a polémica das declarações de rendimentos do ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos ao Tribunal Constitucional (TC) e do papel que o ministro das Finanças teve nessa novela de contornos nebulosos. O enfado não é apenas ridículo: é perigoso. Um país que abdica de querer saber se o seu ministro das Finanças disse a verdade ou se mentiu, onde as opiniões sobre os factos conhecidos se dividem de acordo com as filiações ideológicas ou partidárias é um país no limiar da resignação ou da desistência. Não, no caso de Mário Centeno versus António Domingues, o desempenho gélido de António Costa, o instinto necrófilo da direita que, depois de conviver bem com a mentira quando esteve no Governo se investe de legitimidade para a denunciar na oposição e o zelo de um Presidente da República que cede valores para comprar estabilidade somam muito mais do que uma banal trica. O que está em causa é uma exigência ética sobre a verdade, sobre a honorabilidade da política, sobre o direito que temos de exigir um regime decente que não nos trate como tolos. 

A primeira recusa que se deve ter em relação a este lamentável caso é a da banalização da mentira. Dizer que se Centeno mente, Passos Coelho, Paulo Portas, ou Assunção Cristas também mentiram para daí concluir que a oeste nada de novo é dar carta verde à institucionalização da patranha. Cada mentira que se pressinta, suspeite, perceba e confirme merece o mesmo tratamento, venha de onde vier – é por isso uma vergonha ver os que tanto criticaram, e bem, Maria Luís Albuquerque por causa das mentiras com os swaps a dizerem agora que o que está em causa é um “folhetim” e vice-versa. Se Mário Centeno mentiu, não pode passar incólume ao nosso juízo nem ao nosso protesto apenas porque se limita a cumprir o ritual de uma tradição. Da mesma forma, dizer que uma suposta mentira deve ser relativizada, ou até esquecida, em função do sucesso do ministro na travagem do défice é fazer da política uma operação contabilística onde o resultado tangível vale tudo e o exemplo moral de quem o protagoniza nada conta.  

Feitos os considerandos, vale a pena notar que se há na pele do ministro (que esta segunda se dedicou a uma conferência de imprensa tão desesperada como patética) e no Governo um enorme desconforto é porque o caso não é assim tão feito de amendoins como se pretende. Foi por causa da polémica da entrega das declarações de património e rendimento no TC que António Domingues se demitiu, deixando por mais uns meses o banco público sem gestão após quase um ano de incertezas e de negociações duras entre a administração cessante, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Foi por causa de uma história mal contada que Portugal se expôs a si próprio e lá fora como um país inconsistente onde reinam as trapalhadas.

O caso existe e resiste ao tempo e à tentativa de branqueamento apenas porque quem se der ao trabalho de analisar o que se sabe e for capaz de meter por segundos as fidelidades partidárias na gaveta percebe que, com ou sem provas escritas, com ou sem assinaturas, com termos mais ou menos explícitos, o Ministério das Finanças concordou em isentar António Domingues e a sua equipa do dever de entregar as declarações no TC. E, mais grave ainda, não é necessário ler todos os livros do inspector Poirot para darmos conta de que essa negociação política só não se concretizou porque, por inacreditável incompetência dos serviços jurídicos do ministério e da equipa de advogados de António Domingues, ninguém deu conta que não bastava alterar o Estatuto do Gestor Público para se chegar lá: havia uma inconveniente lei de 1983 que, para ser contornada, tinha de expor um governo de esquerda ao vexame de aprovar no Parlamento princípios escandalosamente inspirados nos valores do laisser faire da direita.

Os emails que conhecemos do ex-líder da CGD e de Centeno podem não provar por A mais B coisa nenhuma, mas o que nós temos à nossa frente não é um exercício de matemática nem um julgamento por homicídio no qual falta a arma do crime. O que nos cabe decidir é se perante o que sabemos, face à inenarrável sucessão de actos de submissão do ministro das Finanças às exigências de Domingues, que passaram até pela atribuição ao banqueiro do poder de escolher a legislação que mais lhe conviesse, aquilo que aconteceu foi apenas um putativo "erro de percepção mútuo", como Mário Centeno agora admite. Não foi. Quando em Outubro o seu secretário de Estado desmentiu o oráculo (leia-se, Marques Mendes) dizendo que a isenção da entrega das declarações “não era um lapso”; quando de seguida Centeno usou quase ipsis verbis extractos dos emails de Domingues para garantir que o escrutínio do património dos gestores seria feito pelo Governo e pelos organismos de supervisão; quando o ministro disse pretender que “a CGD passasse a ser como qualquer outro banco” (nos outros bancos os gestores não têm de declarar nada ao TC); quando em Novembro Domingues lembra ao ministro que a fuga ao crivo do TC era “uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD”, o que falta para suspeitarmos que querem fazer de nós uma cambada de tontos incapazes de ver a verdade entre as teses do formalismo e da propaganda?

O caso Centeno versus Domingues é grave e perigoso porque institui a dissimulação dos “factos alternativos” como política oficial. O Presidente-Rei avalizou essa prática ao exigir “um documento escrito pelo senhor ministro das Finanças” a confirmar a desobrigação do banqueiro às regras da transparência. Mas, inteligente como é, Marcelo Rebelo de Sousa percebeu entretanto que a verdade, como o azeite, acaba sempre por vir ao de cima. E, num golpe de defesa pessoal, deixou Centeno estatelar-se ao afirmar que aceitava a sua continuidade nas Finanças para garantir o “estrito interesse nacional”. Repare-se no preciosismo do “estrito”: significa que o Presidente reconhece que estamos perante uma história mal contada, mas dispõe-se a tolerá-la apenas porque a saída de cena do narrador faria da emenda coisa pior que o soneto. O bom desempenho da economia e das finanças tornou-se assim o álibi com que Centeno e o Governo se permitem subverter as mais elementares noções do dever e da responsabilidade política.

Vir a terreiro falar em erros de interpretações em vez de assumir os custos de uma estratégia que, sendo bondosa na origem (livrar a Caixa das tentações crápulas da política devorista), acabou num desastre deixa no ar a pior das suspeições. Se o Governo cai tão facilmente na tentação de torpedear a verdade num caso no qual só falta uma assinatura, o que fará na penumbra dos bastidores em negócios que não sabemos sequer que existem?

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