Num país em que a polícia pode mentir, a ficção tem de dizer a verdade

O dramaturgo e encenador chileno Guillermo Calderón traz à Lisboa 2017 – Capital Ibero-americana de Cultura a sua peça mais urgente – enquanto na vida real Jorge Mateluna continua detido numa prisão de alta segurança.

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Uma história de violência, a do Chile, que Mateluna retoma no Maria Matos DR
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Guillermo Calderón Fundación Teatro a Mil

Jorge Mateluna, que aos 16 anos já assaltava bancos à mão armada porque alguém tinha de minar o interminável regime pinochetista lá onde ele ia buscar o seu dinheiro sujo, nunca deu festas decadentes em casas ocupadas, nunca se fez explodir como uma piñata num centro comercial, nunca sonhou com um visto para Hollywood – a não ser nesta peça, Mateluna, onde outra coisa que nunca lhe aconteceu na vida real, ser festejado pelo seu passado de resistente contra uma ditadura criminosa, se tornou finalmente possível.

Era já da injustiça desse destino colectivo comum a milhares de juventudes perdidas chilenas que tratava a última peça do dramaturgo e encenador Guillermo Calderón que vimos em Lisboa, Escuela (Próximo Futuro, 2014). Agora, é da injustiça do destino individual de Jorge Mateluna – condenado a prisão perpétua em 1990 por esse assalto de que resultou a morte de um polícia, indultado em 2004, e de novo condenado em 2014, com base em provas ostensivamente duvidosas de envolvimento noutro assalto, a uma pena de 16 anos de prisão – que trata Mateluna, a peça que chega ao Teatro Maria Matos esta quarta-feira, via Lisboa 2017 – Capital Ibero-americana de Cultura. Entretanto, na vida real, um homem de 40 e poucos anos que um carabinero terá incriminado “por engano” (SIC), ou apenas porque um ex-membro do Frente Patriótico Manuel Rodríguez será para sempre suspeito, continua detido numa prisão de alta segurança – condenado a dias inteiros sem ver os filhos, a dias inteiros a falar de carros, a dias inteiros de reggaeton.

Isto é o Chile 27 anos depois da restauração da democracia, diz-nos Mateluna. Ainda.

Uma ficção judicial

Mateluna, diz-nos Guillermo Calderón ao telefone desde Nova Iorque, onde vive actualmente (“O Chile é muito inspirador mas também é muito doloroso, asfixiante; às vezes preciso de sair”), não é a peça que queria ter feito, é a peça que foi obrigado a fazer: “Em 2013, quando estávamos a preparar Escuela, Jorge Mateluna esteve connosco num ensaio a contar a sua experiência na luta armada contra a ditadura – alguns desses episódios, acabámos efectivamente por usá-los no espectáculo, que ele veio ver. Cinco meses depois da estreia, foi detido por um crime de que diz estar inocente: este espectáculo tornou-se uma emergência, era impossível virarmos-lhe a cara.”

Foi um processo duro – e não só pelas óbvias “razões pessoais”. Mateluna forçou Calderón, que sempre viu na dramaturgia um óptimo lugar para tratar de política mas “de um ponto de vista mais estético, mais literário”, a trabalhar num formato que nunca lhe tinha “interessado particularmente”, o teatro documental. Ou seja: a falar com advogados e outras fontes ligadas ao processo, a obter documentos (como o vídeo da prova de reconhecimento facial em que a testemunha ocular aponta para um homem e o agente aponta o nome de outro; ou a gravação do julgamento em que o mesmo agente admite ter-se enganado), a pôr esses documentos num contexto, e a lidar com toda essa parafernália em cima do palco. “Estou habituado a ter um controlo absoluto sobre a história, sobre a sua subtileza, sobre a sua contundência. Aqui não podia controlar quase nada. A realidade lá fora era muito impositiva”, explica.

Mateluna encarrega-se de mostrar como um dramaturgo e os seus actores resolveram essa crise num espectáculo, ao mesmo tempo que com esse espectáculo procuravam (e ainda procuram) resolver a crise infinitamente mais grave e mais premente de Jorge Mateluna. As perguntas difíceis que tiveram de fazer ficarão para sempre à vista, como cicatrizes de um processo que pôs em causa as próprias regras do jogo que estão habituados a dominar no teatro, o da ficção (por oposição ao jogo da verdade que é suposto vigorar num Estado de direito): “Como é que a ficção se posiciona diante de uma realidade tão brutal e tão explícita? Como é que enfrentamos a verdade no palco? É tudo muito movediço quando o que está em causa é justamente o facto de os testemunhos que condenaram Jorge Mateluna serem uma ficção. Mas se a realidade já foi ficcionada pelo próprio sistema judicial, o teatro talvez possa encarregar-se de dizer a verdade – mesmo sendo o lugar menos indicado para isso.”

Redenção

Estreada em Setembro em Berlim por encomenda do Hebbel am Ufer – onde integrou o festival A Estética da Resistência que ali celebrou o centenário de Peter Weiss, autor da obra homónima –, Mateluna ainda só teve sete apresentações no Chile, onde, lamenta Calderón, “o público está muito acostumado a que a polícia invente testemunhos, forje provas, faça o que quer”. Na Europa, “onde um julgamento como este teria sido anulado”, é possível que os espectadores não acreditem que o caso de Jorge Mateluna é real a não ser que os actores o tornem absolutamente explícito antes de a peça começar, como advertiu o próprio director do Maria Matos, Mark Deputter, quando viu a peça no festival Santiago a Mil. Depois disso, Calderón incluiu no texto o nome do juiz e o nome do carabinero “para tornar tudo mais credível”; se for preciso, diz, pode ainda ser “mais radical”.

Seja como for, é no Chile, onde o espectáculo voltará a ser apresentado a partir de Abril, que o destino de Mateluna se decidirá – e com ele o destino do teatro político em que apesar de tudo Calderón acredita. “Queremos que o caso seja reaberto – e as primeiras apresentações já serviram para atrair muita atenção jornalística e gerar alguma agitação social. Os apoiantes de Jorge Mateluna manifestaram-se todos os dias à porta do teatro. Houve políticos que foram ver a peça. Pessoas próximas do juiz pediram-nos para falar connosco. Mateluna faz parte de uma campanha mais geral para libertar o Jorge: se for um êxito, e ainda que não corrija o dano, irreparável, do trauma histórico da transição para a democracia que condenou pessoas como ele a serem para sempre cidadãos de segunda ou terceira categoria, será uma redenção incrível para o teatro político; se for um fracasso, confirmará as suas limitações.”

No teatro, onde esta história podia ter acabado como Guillermo Calderón quisesse (balões, palmas, fanfarras, arco-íris, tudo aquilo a que um final feliz tem direito), Jorge Mateluna sai da prisão apenas por breves instantes. Talvez a vida real possa dar-lhe um fim bem mais espectacular.

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