De tanto cabecear, o cérebro dos futebolistas pode perder capacidades até à demência

Estudo britânico estabelece uma relação entre os impactos sofridos pelos futebolistas na cabeça ao longo da carreira e doenças neurológicas. Os 14 antigos jogadores da amostra começaram a perder capacidades cognitivas, em média, a partir dos 64 anos.

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Petr Cech sofreu uma fractura craniana com afundamento em 2006 e não voltou a jogar sem capacete Reuters/CHRISTIAN HARTMANN

Um estudo publicado nesta quarta-feira na Acta Neuropathologica, revista científica dedicada à patologia e à patogénese de doenças neurológicas, estabelece uma relação entre o "sucessivos impactos na cabeça no passado" dos futebolistas e aquele tipo de doenças. Os jogadores podem vir a sofrer de demência muitos anos após terem terminado as suas carreiras.

O estudo foi conduzido no Reino Unido pelo Instituto de Neurologia da University College de Londres (UCL) e tinha como objectivo ver até que ponto é que a prática de futebol, que envolve cabecear bolas e choques com outros jogadores, influencia o desenvolvimento de doenças cerebrais. A coordenadora do estudo, Helen Ling, sublinha a importância destas iniciativas, uma vez que existe “uma necessidade premente e identificar o risco, e apelou à “cooperação da Federação Inglesa de Futebol (FA) e da FIFA”, cita a agência Lusa.

Entre 1980 e 2010, o Serviço de Geriatria Psiquátrica, em Swansea, verificou a existência de 16 casos de jogadores de futebol reformados que estavam a perder capacidades cognitivas – e aconselhou que fossem todos submetidos a vigilância médica até à sua morte. No entanto, os parentes dos atletas em causa só permitiram que 14 servissem de amostra ao estudo: 13 foram futebolistas profissionais e um amador, que praticaram este desporto durante 26 anos (em média). O seu historial médico e o seu historial de carreira foram recolhidos.

Dos 14 casos submetidos a análise, seis foram sujeitos a um exame post mortem ao cérebro e, após um exame neuropatológico, verificou-se que apresentavam anormalidades no septo pelúcido, estrutura que se encontra no sistema nervoso central. Dos seis exames post mortem realizados, quatro casos apontaram para a existência de encefalopatia traumática crónica (CTE, na sigla em inglês), uma potencial causa neurodegenerativa, segundo o estudo, de demência e deterioramento de capacidades motoras.

É potencial porque a comunidade médica ainda não chegou a um consenso sobre o que é a CTE, como afirma Gabriela Lopes. A neurologista do Centro Hospitalar do Porto diz ao PÚBLICO que a CTE "é ainda uma identidade controversa na comunidade médica".

"É definida, por um lado, como uma doença neurodegenerativa causada pelo efeito acumulativo de traumatismo cranianos repetidos, que se pode desenvolver pouco tempo ou muitos anos depois desses traumatismos. Por outro lado, há quem considere que os traumatismos vão desencadear ou acelerar o aparecimento de outras doenças degenerativas", explica Gabriela Lopes. "Histologicamente, encontra-se uma deposição cerebral de proteínas alteradas com um padrão que é diferente dessas doenças, suportando a hipótese de que a CTE é uma entidade neurodegenerativa autónoma, mas que se pode apresentar de várias formas."

E que formas são essas? "A apresentação clínica é muito variada, incluindo variantes comportamentais, cognitivas e, mais raramente, motoras, indistinguíveis de outras doenças como a doença de Alzheimer, outras demências ou até de uma doença de Parkinson”, diz a neurologista.

Os autores do estudo afirmam que as doenças estão “provavelmente relacionadas com os seus passados de longa exposição a repetitivos impactos de cabeça em colisões com outros jogadores e de cabecear a bola milhares de vezes durante as suas carreiras”. Contudo, o próprio estudo refere que não se pode estabelecer uma “ligação definitiva” entre a prática de futebol e a CTE, mas sim uma “ligação potencial”, nota Helen Ling.

Casos mediáticos

Apesar de o estudo ser deste ano, as preocupações com as lesões cerebrais provocadas pela prática futebolística vêm de trás. Ao longo dos anos, foram identificados alguns casos, inclusivamente alguns recentes, cujas consequências a longo prazo ainda não são conhecidas.

Num jogo da Taça de Portugal entre o FC Porto e o V. Guimarães, em 2004, Costinha sofreu um traumatismo crânio-encefálico, depois de ter chocado com o vimaranense Flávio Meireles. O jogador dos "dragões" chegou a ter perda de consciência e amnésia retrógada. O FC Porto avançou que o médio tinha um "bom prognóstico" e que lesões graves tinham sido "excluídas".

Em 2006, num jogo que pôs frente-a-frente o Reading e o Chelsea, Petr Cech sofreu uma fractura craniana com afundamento, fruto do choque da cabeça do então guarda-redes dos "blues" com a perna de Stephen Hunt. Foi uma lesão grave que deixou o jogador fora dos relvados durante três meses, mas o neurocirurgião Peter Hamlyn, num artigo publicado na altura no jornal The Telegraph, escreveu: "Felizmente para ele, às fracturas cranianas não estão normalmente associadas lesões graves no cérebro, o que significa que podemos prever que Cech recuperará totalmente." Hamlyn defendia que, mesmo assim, Cech não poderia tornar a jogar tão cedo, sob o risco de sofrer uma "síndrome de segundo impacto", e aí a situação já seria mais grave. O guarda-redes checo voltou aos relvados em Janeiro de 2007 com uma protecção na cabeça que nunca mais deixou de usar.

Em Setembro de 2016, Falcao chocou com o guarda-redes do Nice Cardinale, tendo sofrido uma concussão cerebral. O ponta-de-lança do Mónaco foi apressado para o Hospital Princesa Grace do Mónaco, onde os exames não indicaram qualquer problema grave. 

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