"É tão ténue a fronteira entre acelerar a morte ou antecipá-la"

O ex-coordenador do BE, João Semedo, fala do anteprojecto de lei da eutanásia que o partido vai apresentar quarta-feira no Parlamento. Propõe a criação de uma comissão de médicos, juristas e especialistas em ética para a fiscalizar a aplicação da lei.

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João Semedo diz que a "ética médica também evoluiu" Paulo Pimenta

A fronteira entre deixar morrer, acelerar a morte ou antecipá-la é “tão ténue”, diz João Semedo, 65 anos, médico e político reformado depois de um cancro que o deixou muito debilitado. Sem cordas vocais, conseguiu reaprender a falar e esta quarta-feira volta à Assembleia da República para apresentar o anteprojecto de lei para a despenalização da eutanásia e do suicídio medicamente assistido. Aos que avisam que esta lei abre portas a perversidades e a abusos, garante que tal não vai ser possível até porque será criada uma comissão de médicos, juristas e especialistas em ética para avaliar se as condições e requisitos estão a ser cumpridos. 

Por que é que se fala tão pouco da morte?
Não pensamos na morte até para preservarmos a nossa sanidade mental. Este debate sobre a morte assistida levará as pessoas a reflectir sobre as problemáticas de fim de vida. O que propomos no anteprojecto é apenas uma nova opção para quem a ela quiser recorrer.

Os especialistas em cuidados paliativos dizem que os doentes terminais, que antes diziam que iriam pedir que os ajudassem a morrer, mudam quase sempre de opinião.
No anteprojecto está expresso que a decisão do doente é revogável a qualquer momento e estão previstos vários momentos de avaliação da sua vontade. O doente tem de reiterar a sua vontade várias vezes. Se mudar de opinião, [o processo] não se concretiza. É uma questão de respeito, de tolerância e a lei só tem que incluir este direito a uma escolha e acautelar e prevenir que nada será feito de forma leviana e que não haverá qualquer abuso nem derrapagem.

Os críticos dãos os exemplos da Bélgica e da Holanda como países em que a legislação derrapou.
Não adianta nada acenar com esses fantasmas. Não há leis só na Bélgica e nos Países Baixos. Temos a oportunidade de aproveitar experiências tão diferentes como as do Uruguai, Colômbia, Canadá e de vários Estados dos EUA. Está absolutamente claro que não incluímos crianças nem pessoas com problemas do foro mental. Devemos olhar para estas experiências e ver o que vale a pena preservar. [A Holanda e Bélgica] legislaram para situações ultra extremas.

Por que motivo é que terão que ser médicos a aplicar a lei?
O processo implica uma avaliação clínica e psicológica, um diagnóstico, um prognóstico. Há alguém melhor na sociedade do que um médico para desempenhar esta tarefa, num momento tão difícil e dramático? Mas pode ser uma equipa de enfermeiros coordenada por um médico.

Os médicos dizem que são formados para salvar, não para matar.
Um parto natural é algum tratamento? Mas é um acto médico. Ajudar alguém a parar o seu sofrimento é, penso, muito nobre e ético. A ética médica também evoluiu. Leia-se o Juramento de Hipócrates, na versão de 1771. Diz: “Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei” e também “guardarei castidade e santidade na minha vida e na minha profissão”. Em 2006, já se afirma: ”Eu manterei o máximo respeito pela vida humana”. Ora isto não é tão impositivo e imperativo como os senhores bastonários da Ordem dos Médicos querem fazer crer. Respeitar a decisão do doente é que é humanismo e tolerância.

Mas isso já se faz quando se se suspende o tratamento dos doentes terminais.
O Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos aprovou, no início da década de 2000, uma resolução sobre o conjunto de situações em que é boa prática suspender ou não iniciar tratamento, aquilo a que chamam deixar morrer. Depois, temos a sedação e analgesia para eliminar a dor e que acelera a morte. E há a eutanásia e o suicídio medicamente assistido em que a morte é antecipada. Deixar morrer, acelerar a morte ou antecipar. Qual é a diferença? A intenção. Desde quando é que a intenção pode ser a fronteira da ética médica? Respeito muito os colegas que deram grande impulso aos cuidados paliativos mas não acho que têm mais ética do que eu. 

Como é que os pedidos vão ser tratados?
A avaliação (diagnóstico, prognóstico, situação clínica e estado de consciência) tem de ser feita pelo médico a quem o doente se dirige. Depois haverá um segundo médico [da especialidade correspondente à patologia] a avaliar o pedido. Se se colocar alguma dúvida sobre o estado psíquico, o grau de lucidez e de consciência do doente, será ainda necessário que um psiquiatra se pronuncie. Os doentes mentais, as crianças e os idosos estão excluídos. O doente tem que ser portador de uma lesão definitiva ou de uma doença incurável e fatal, um quadro clínico de intenso sofrimento, duradouro e insuportável. 

Como será provocada a morte?
Pode ser um enfermeiro a administrar a substância letal, desde que seja com supervisão médica. No suicídio medicamente assistido, é o próprio doente que toma a substância.

Conhece casos de eutanásia no Serviço Nacional de Saúde?
Acho que ainda há práticas de obstinação, mas cada vez menos. Nos cuidados paliativos, a sedação e analgesia servem para acelerar a morte. Não excluo que, em situações muito particulares e pontuais, se tenham verificado situações dessas [eutanásia] no Serviço Nacional de Saúde. É tão ténue a fronteira entre deixar morrer, acelerar a morte ou antecipá-la. Devia ser opção de cada um e, na esmagadora maioria dos casos, é opção do médico. 

Onde será praticada a eutanásia?
Em casa do doente, se houver condições, ou em unidades públicas e privadas, não temos preconceitos.

Como será possível evitar que haja abusos?
Propomos a criação de uma comissão de avaliação e revisão dos processos de antecipação nomeada pela Assembleia da República. Uma comissão de juristas, médicos e especialistas em ética destinada a acompanhar a aplicação da lei.  A comissão avalia se as condições, requisitos e procedimentos definidos na lei foram ou não cumpridos, quer nos casos em que a eutanásia é realizada quer nos casos em que não é. Caso haja alguma desconformidade, participa ao Ministério Público e às ordens dos profissionais envolvidos.

Quem fez a lei e por que é que avançam agora?
A lei foi feita por José Manuel Pureza, pela jurista Inês Godinho e por mim. É uma lei a três mãos e recolheu a opinião favorável e alterações concretas por parte de um grupo de dez especialistas, médicos, juristas. Este assunto não é de esquerda nem de direita. Em 2009, o Bloco anunciou que ia avançar com quatro iniciativas a propósito das problemáticas de fim de vida: rede nacional de cuidados paliativos, condenação da obstinação terapêutica, testamento vital e morte assistida. Anunciamos há muito tempo que íamos percorrer este caminho.

Mas este é um problema assim tão premente?
Todos nós já convivemos com o sofrimento, é um problema de uma enorme dimensão social. As patologias cuja fase final é acompanhada por quadro de intenso sofrimento estão a aumentar, os casos de morte natural ou morte súbita são cada vez menos.

O anteprojecto tem 25 artigos. Isso é suficiente para legislar sobre uma matéria tão complexa?
O Bloco vai andar vários meses a discutir o anteprojecto publicamente. Queremos que muita gente colabore na construção de uma boa lei.

Mas não seria mais legítimo fazer um referendo?
A discussão do referendo é como a do Tribunal Constitucional: é para fugir ao debate. Pôr a referendo um direito individual não é democrático, porque as escolhas são desiguais. A própria ideia de referendo ofende a ideia de direito individual.

Nos últimos tempos têm-se multiplicado as petições e as iniciativas contra a eutanásia.
As leis em Portugal não são um campeonato de petições e as causas justas muito menos. O que faz uma lei forte é o resultado da sua aplicação. Não temos pressa nenhuma, a nossa discussão não obedece a um calendário, mas também não é para aquecer nem para entreter.

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