Nos idos de Março: a União Europeia entre a integração e a fragmentação

A União Europeia, ou consegue renovar o espírito e atracção do Tratado de Roma de 1957, ou a saída britânica marcará o futuro europeu. No pior cenário todos perderão, quer britânicos, quer europeus.

1. Na Antiguidade, os idos de Março do ano 44 a.C. foram marcantes para o rumo do Império Romano. Nessa data ocorreu o assassinato de Júlio César. (Os idos são uma das divisões do calendário romano e o de Março situava-se a 15). Este ano, a União Europeia também vai ter um mês de Março com dois acontecimentos maiores, mas de sinal contrário: a comemoração dos 60 anos do Tratado de Roma, a 25 de Março; e a notificação formal, pelo Reino Unido, da sua vontade de saída da União, nos termos do artigo 50.º do Tratado da União Europeia. Ambos têm um peso simbólico e político grande. O primeiro, comemora um momento crucial da integração europeia do pós-II Guerra Mundial: a vontade de unificação, através de um ambicioso processo de transferência de soberania para instituições comuns — na altura com o objectivo de formar um mercado comum. O outro, o da vontade de seguir um caminho nacional próprio, mantendo a soberania do Estado, e olhando para o resto do mundo mais do que para a Europa. Qual deles se vai mostrar decisivo para o futuro europeu?

2. A saída britânica da União Europeia e a viragem na política externa dos EUA, podem dar origem a uma nova vaga de integração. É pelo menos essa a convicção, talvez mais um desejo, dos europeístas-optimistas. À primeira vista, a ideia tem consistência. Os britânicos sempre foram um membro renitente da União, bastante céptico quanto às vantagens de um maior aprofundamento da integração. Quanto aos EUA, as políticas do novo Presidente, Donald Trump, são uma fonte de preocupação para a grande maioria dos governos europeus e para as instituições da União Europeia. O facto de se poder contar menos com os EUA, ou não se poder contar de todo, poderá funcionar como catalisador de mais integração, pela via da necessidade de encontrar alternativas europeias. Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, deu um impulso adicional a essa ideia. Entre os maiores desafios à União (os quais, de alguma forma, são também ameaças), enunciou a ascensão da China, a agressiva política externa da Rússia face aos países vizinhos e o radicalismo islâmico que desestabiliza o Médio Oriente e o Norte de África. A este rol, acrescentou as preocupantes declarações do Presidente dos EUA. (Certamente estava a pensar nas afirmações favoráveis ao Brexit, nas críticas à NATO, vista como uma organização obsoleta, e no menosprezo pelo multilateralismo).

3. Numa outra União Europeia, mais coesa e mais próxima do núcleo duro original, talvez o anterior cenário optimista se pudesse concretizar. No contexto actual, é muito improvável. A saída do Reino Unido da União Europeia, a concretizar-se, não vai fazer a União Europeia regressar a uma situação pré-1973, quando ocorreu o primeiro alargamento, que incluiu o Reino Unido. Na época, a França era o líder indisputado. Nem sequer a uma situação similar a 1995, onde no alargamento desse ano à Áustria, Suécia e Finlândia, abarcou a generalidade do que se pode chamar, em termos culturais e políticos, a Europa Ocidental. (Nessa altura, já a Alemanha começava a ganhar ascendência, mas ainda não era claro que tinha desequilibrado o eixo franco-alemão a seu favor). A União Europeia pós-Brexit, com 27 Estados-Membros, continuará a ter, provavelmente até de uma forma mais expressiva, ou opressiva, consoante a perspectiva, a Alemanha como Estado-Membro dominante. Continuará a ter a maior parte dos seus membros na Zona Euro, mas um número significativo também fora desta. Continuará a ser uma União muito diversa e heterogénea, em termos políticos, económicos e formas de ver o mundo. Nada disto facilita avanços na integração.

4. Aos olhos de muitos europeístas a União Europeia deverá enfrentar a saída britânica com uma ideia fundamental em mente: o Brexit não pode tornar-se um caso de sucesso. Nesta óptica, a percepção de sucesso na saída da União aumentará (e muito), o risco de outros Estados-Membros — sobretudo os que não fazem parte da Zona Euro —, quererem igualmente abandonar a União Europeia. No actual contexto político é um receio fundado. É por isso compreensível que a União queira fazer tudo para evitar a fragmentação europeia e o retrocesso do processo de integração. Mas qual é a melhor forma de evitar que a União perca atracção e se fragmente? Há sinais de que o processo se vai iniciar num ambiente negocial tenso, quase hostil. Muitos burocratas europeus, e vários Estados-Membros também, estão com vontade de revanche. Todavia, nem em termos estratégicos, nem em termos de ideais europeus, parece ser uma boa abordagem. Importa notar que os trunfos negociais não estão apenas do lado da União Europeia. Se fosse assim, e abstraindo dos ideais europeus, o Reino Unido até poderia pagar uma pesada factura sem danos para a União. Seria punido pela sua própria saída (e de forma exemplar) para dissuadir outros de fazerem o mesmo.

5. Lead or Leave (liderar ou sair), capta a maneira de olhar britânica para a União Europeia. No mundo da primeira metade do século XX o Reino Unido era uma grande potência com interesses globais. Em parte, essa memória explica a falta de atractivo da União Europeia. Apesar da óbvia quebra de poder face ao passado, é a mais importante potência militar, convencional e nuclear, da Europa Ocidental. Para além disso, tem uma ligação cultural, comercial e política privilegiada aos EUA, e uma economia de dimensão apreciável mais pró-globalização do que o resto da União. Tudo isto não são aspectos menores na negociação do Brexit. Com o actual governo norte-americano a favorecer ostensivamente as relações bilaterais, contornando as instituições europeias, o problema europeu agudiza-se. Para os britânicos, amplifica o seu poder negocial: podem usar a sua relação com os EUA, seja comercial, seja político-militar, para pressionar a União Europeia. Quanto à questão da globalização, a economia britânica, pela história do país — no passado ligada a um enorme império colonial, hoje aos países da Commonwealth —, tem uma orientação natural para o resto do mundo. Se a União lhe fechar as portas ao seu mercado interno, poderá transformar-se, ainda mais, numa “Ilha (neo)liberal” às suas portas, para atrair empresas, capitais e investimentos.

6. Existe o risco de as negociações do Brexit se tornarem algo parecido ao filme Nos Idos de Março / The Ides of March (2011), de George Clooney: jogos de poder sujos onde vale tudo para ganhar. Do lado britânico, a ideia de que é possível ter o melhor de dois mundos — vantagens similares às de um membro da União sem as desvantagens e/ou constrangimentos que esta implica — não faz sentido. É um obstáculo sério à negociação. Quanto à União Europeia, tem de voltar a ganhar atracção pelos seus próprios méritos. Se não conseguir impulsionar de novo o ideal europeu, não será a atitude de revanche face à saída do Reino Unido a evitar a fragmentação. Terá de encontrar formas de renovar o ideal da integração europeia que surgiu ligado à fundação das Comunidades. No passado, teve o enorme mérito de ajudar à paz, à prosperidade e à reconciliação dos europeus no pós-guerra. A integração sempre constituiu uma partilha voluntária de soberania e atraindo novos Estados em sucessivos alargamentos. Em 2017, a União Europeia vai estar nos seus “idos de Março”: ou consegue renovar o espírito e atracção do Tratado de Roma de 1957, ou a saída britânica marcará o futuro europeu. No pior cenário todos perderão, quer britânicos, quer europeus. A Europa, no seu conjunto, ficará ainda mais irrelevante no mundo.

 

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