Uma canção esmagadora para dançar o amor

Wim Vandekeybus despede-se de Speak Low if You Speak Love com quatro datas em Portugal. Última visita à sua “pequena ópera em movimento” em torno de um amor feito de todas as possibilidades.

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Danny Willems
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Rodney Hatch, um vulgar barbeiro, compra um anel de noivado para a sua namorada e resolve colocá-lo no dedo de uma estátua de Vénus. A deusa do amor, enganada pelo gesto, desce do pedestal e resolve investir todo o seu manancial de sedução na conquista de Hatch. Há-de segui-lo depois por Nova Iorque nessa obsessão de atrair o barbeiro com o seu magnetismo sobrehumano. E como cartada mais irresistível, faz uso do seu mais ardiloso recurso: canta-lhe a mais esmagadora das canções — Speak low. Composto por Kurt Weill para esse musical da Broadway, One Touch of Venus, estreado em 1943, o tema havia de ser popularizado pelas vozes de Lotte Lenya ou Nat King Cole, mas nenhuma interpretação excederia a versão de Billie Holiday, capaz de dobrar qualquer Rodney Hatch e soar ao próprio sopro divino de Vénus.

O título da canção de Weill, com letra de Ogden Nash, seria extraído de uma fala de escassa importância da peça de Shakespeare Much Ado About Nothing.

Wim Vandekeybus gosta da falta de peso que a frase isolada assume na trama teatral, assumindo-se cativado por uma “leveza do amor” que quis transportar para a coreografia Speak Low if You Speak Love, coreografia de 2015 cuja carreira internacional termina este mês em Portugal — 11 de Fevereiro no GUIdance (Guimarães), 15 em Viseu, 17 em Coimbra e 24 em Almada. “Temos de ver o amor aos poucos, não como o tema principal mas como sendo inerente a outros temas”, diz o coreógrafo belga ao Ípsilon. Quando fala noutros temas está, na verdade, a referir-se a todas as temáticas possíveis, do nascimento à morte, da dádiva ao assassínio. É como uma ideia maior do que todas as outras, que as infecta indiscriminadamente até ao osso e que não necessita, portanto, de reclamar o centro. Está por todo o lado.

E é isso que acontece em cada segundo de Speak Low if You Speak Love. O amor é um pouco de todas as possibilidades, manifesta-se sob todas as formas, assume-se ternurento, violento, incondicional ou manipulador. É tão responsável por acelerações ansiosas dos batimentos cardíacos e de bocas secas de palavras quanto causador de náuseas e ferimentos irreparáveis. A Vandekeybus tanto interessa uma noção conceptual do amor herdada da Grécia Antiga quanto a memória ou recordação de um acontecimento que pode ter não mais do que uma semana na mais anónima e frívola vida contemporânea. Sem uma narrativa arrumada e desenhada para desembainhar uma história de amor, Speak Low faz-se de milhentos amores fragmentados, disparados nas mais variadas direcções e não se deixa aprisionar por qualquer dever de coerência.

“Agora talvez me apanhe a mim mesmo a pensar que posso ter lidado mais com a ideia de paixão do que propriamente de amor”, reconhece Vandekeybus. Isso acontece, suspeita, porque a juventude dos intérpretes o conduziu ao arrebatamento, à fisicalidade e a uma sensualidade que, arriscar, poderá estar ligada a um prazer de satisfação mais imediata. Conta o presente, menos o futuro. Mas Speak Low é também palco para o coreógrafo colocar em cena as suas próprias interrogações sobre a ubiquidade amorosa e o porquê de surgir, por vezes, nas situações mais caricatas. “Na cena do viking”, exemplifica, “temos essa pessoa que adora lutar e que achamos que não se ocupa do amor. No entanto, tem a estátua de uma mulher na proa do seu barco. Há também uma religiosa que recusa todas as formas carnais de amor na Terra, mas vive numa relação directa com Deus. Por causa disso, fica intrigada com as outras formas de amor, e ao ceder à curiosidade tem obrigatoriamente de se confessar. Quis olhar para estas figuras para pensar no amor, mas acho também que chegámos a algo em que a tentação e a sedução serão, porventura, mais interessantes e estimulantes do que a sua concretização.”

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Esconder ou revelar

Wim Vandekeybus não está exactamente preocupado em ser fiel a uma definição de amor — é uma forma de retribuir à infidelidade que coloniza de forma alarve esse estado emocional. Até porque, “o amor está muitas vezes mais ocupado a esconder do que a revelar”, diz. Por isso mesmo, nos primeiros 15 a 20 minutos de Speak Low o coreógrafo nega um rosto aos seus bailarinos, ocultando-o atrás de máscaras. Quer também ele esconder, evitar o contacto visual, roubar uma identidade específica e, tal como fará mais tarde, ao enfiar homens e mulheres em palco com idênticos vestidos vermelhos, advoga a igualdade ao mesmo tempo que lembra o quanto há nessa defesa de valores um mandamento bíblico ditado pelo amor. “Temos de respeitar os outros seres humanos, não podemos matar o próximo”, reforça. “O problema é que os grandes políticos, como Trump, fazem o contrário de tudo isso e confundem o mundo inteiro acerca dos valores essenciais que deviam ser claros para todos e estão hoje em perigo.”

O que Vandekeybus quer exercitar em Speak Low é, portanto, aquilo que entende ser uma qualidade característica do teatro e da dança e que passa por simular ou sugerir a empatia. “Quando o público compreende algo, pode sentir-se espelhado naquilo que acontece em palco e sentir essa ligação.” A empatia fica também a cargo da música, arma de sedução de Vénus que o coreógrafo aqui entrega tanto aos trechos criados e dirigidos por Mauro Pawlowski, membro dos dEUS e seu colaborador habitual, quanto aos fragmentos cantados pela sul-africana Tutu Puoane, que Vandekeybus queria ouvir a “segredar o amor aos nossos ouvidos”. A importância fundamental da música faz com que o belga defina Speak Low como “algo entre uma pequena ópera ou um concerto tomados pelo movimento, e um teatro subterrâneo, sem palavras que não sejam cantadas”.

Speak Low foi crescendo durante as filmagens da primeira longa-metragem de Vandekeybus, Galloping Mind, rodada na Hungria e na Roménia. No final, ao voltar para Bruxelas enfiou a cabeça em livros e filmes que ajudassem a estabelecer as fronteiras para uma peça fervida durante meio ano, enquanto se alimentava de reflexões sobre “a memória histórica, a religião, as crenças, a fé, a traição e mesmo a ficção científica”. É possível que tenha sido nesse processo que começou a fantasiar com Mockumentary of a Contemporary Saviour, peça para quatro actores e três bailarinos apontada à ficção científica que estreará em Abril. No palco dessa nova peça. Vandekeybus colocará um mundo num amanhã distante, sem países e em que as personagens vivem esterilmente numa safe house. É um modo de perguntar em voz alta se qualquer  “salvador” fará a escolha acertada ao tentar evitar a extinção da humanidade e se é sequer justo colocar aos ombros de um homem essa missão. É possível que o amor, sempre o amor, não chegue para tanto.

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