Depois da madrasta da Branca de Neve, é Trump que não os deixa dormir

Peters dá algumas dicas que parecem clichés, mas que precisamos de ouvir e de transmitir aos nossos filhos. “O futuro é sempre incerto.” Não vale a pena preocuparmo-nos com o que vai acontecer, senão quando acontecer.

A pergunta é inesperada. “Se rebentar uma terceira guerra mundial, Portugal fica de fora?” Na televisão passa mais uma decisão de Trump que mexe com o mundo, afinal as suas decisões podem ter mais impacto que o bater de asas da borboleta. Não olho para ele, mas percebo que a preocupação é real. Há um ano participou no Dia da Defesa Nacional, aquele a que vão todos os rapazes e raparigas quando perfazem 18 anos.

Não sei o que responder. Portugal participou na primeira, mas não na segunda guerra, começo por dizer. E respondo à cautela que a União Europeia tem na sua génese a paz, logo, os grandes estados europeus não têm qualquer interesse em conflitos bélicos. “Mas se houvesse, eu seria chamado?” Não sei, as guerras hoje são muito diferentes…

A resposta não o satisfaz e levanta-se do sofá com um suspiro de frustração. Um dia ou dois depois, ela entra de rompante na cozinha e diz-me indignada que todas as referências às “alterações climáticas” desapareceram do site da Casa Branca. “E vão deixar de reciclar!”, acrescenta, indignada com o retrocesso.

“Não faz mal, nós continuamos a reciclar…”, digo para logo me arrepender, tal é o olhar de reprovação que recebo. Sim, porque reciclarmos na nossa casa e na Casa Branca é quase a mesma coisa, penso frustrada com a resposta, ao mesmo tempo que ela verbaliza exactamente a mesma ideia, antes de sair como entrou, zangada. Ainda atiro: “Em Portugal! Continuamos a reciclar em Portugal e no resto da Europa também…”

Antes das eleições não acreditávamos que Trump saísse vencedor. Como seria possível com aquele discurso de ódio? Com as provocações? Com as mentiras? Trump é tudo aquilo que ensinámos os nossos filhos a não ser: bullie, arrogante, xenófobo, machista, ignorante.

Política à parte, damos graças a Deus por terem passado a infância e a adolescência com um pai e um marido como Obama na Casa Branca. Um homem afectuoso, que brincava com as filhas, que ria com a mulher, que cantava e dançava com os amigos. Nada comparável com o velho e a mulher-troféu com a qual ainda não testemunhámos um único momento de cumplicidade.

Com Trump, ensinamos novas palavras aos nossos filhos – entrámos na era da “pós-verdade” e dos “factos alternativos” – que é o que agora chamamos à “mentira”. “Chegaste às duas? Eu diria que esse é um facto alternativo porque a essa hora chegámos eu e o pai, e tu ainda não estavas em casa…”

A única figura dos clássicos que os atemorizou em pequenos foi a madrasta da Branca de Neve, quando se transformava em velha bruxa. Chegou a entrar algumas vezes nos seus sonhos. Hoje é Trump que não os deixa dormir.

Mas não são os únicos a sentir-se assim. Os meios de comunicação social norte-americanos ouviram pais e especialistas sobre o tema, logo após a vitória de Trump. “Incerteza. Preocupação. Medo.” É assim que o psicólogo Dan Peters, que escreve no Thrive Global, uma plataforma criada por Arianna Huffington, começa o seu texto com conselhos para os pais

Peters dá algumas dicas que parecem clichés, mas que precisamos de ouvir e de transmitir aos nossos filhos. “O futuro é sempre incerto.” Não vale a pena preocuparmo-nos com o que vai acontecer, senão quando acontecer. No caso de Trump, já o assumimos, uma vez que todos os dias há novidades. “O que é que ele fez hoje?”, tem sido a pergunta com que somos brindados mal chegamos a casa. 

“As pessoas são naturalmente boas”, nunca foi tão verdade como depois da eleição de Trump. Logo no dia seguinte houve uma marcha global pela paz, pelos direitos humanos, pela justiça social. Depois da sua decisão de fechar fronteiras, foram muitas as pessoas que revelaram ser “boas”: dos advogados que se dirigiram aos aeroportos para ajudar as famílias dos imigrantes, passando pela procuradora-geral Sally Q. Yates, que ordenou ao Departamento de Justiça que não defendesse o decreto assinado por Trump, e pelo juiz James L. Robart, um republicano que emitiu uma ordem a bloquear temporariamente a directiva.

“Devemos ser melhores pessoas todos os dias”, termina o psicólogo. Mary Laura Philpott é uma mãe que se confrontou com o desgosto dos filhos, no dia seguinte às eleições, e contou ao Washington Post o que lhes disse então: “Tudo aquilo que pensávamos e acreditávamos ontem continuamos a pensar e a acreditar hoje. (…) Por isso, só temos de agir de acordo com aquilo em que acreditamos.”

É isso que queremos lembrar diariamente aos nossos filhos.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários