Se Woody Allen começasse a filmar hoje, chamar-se-ia Alex Ross Perry

Berlim mostrou Golden Exits, a comédia neurótica que Woody Allen já não é capaz de fazer.

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Alex Ross Perry Sean Price Williams
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Emily Browning e Adam Horovitz em Golden Exits Sean Price Williams

Como seria ver um filme de Woody Allen antes de ele ser Woody Allen? Antes de Annie Hall, antes de Manhattan, antes do cineasta americano se tornar no arquétipo da alta comédia intelectual nova-iorquina, da qual a cidade é uma personagem a tempo inteiro?
A pergunta não aparece caída do céu; é que Alex Ross Perry, cineasta vindo da ultra-independência nova-iorquina que também nos deu os irmãos Safdie, Sean Baker ou António Campos, é capaz de ser o Woody Allen para os anos 2000. Já estivemos um pouco nesta posição com Noah Baumbach, que também andou por estes territórios, mas com Golden Exits, quinta longa-metragem do jovem realizador americano, estamos clarissimamente no território que Allen fez seu nos anos 1970 e 1980: os intelectuais urbanos que têm opinião sobre tudo mas não são capazes de resolver os seus próprios problemas emocionais. O cineasta continua a ser um nome algo confidencial, mesmo nos seus EUA natais; o novo filme passou no Forum, a secção não-competitiva de vanguarda de Berlim, mas já merecia estar no concurso principal do festival. 

Golden Exits usa uma jovem australiana de passagem por Nova Iorque como testemunha e catalisadora de uma crise surda da meia-idade. Contratada para assistir Nick, arquivista de profissão, na catalogação do espólio do sogro falecido, e sem outros amigos a não ser Buddy, um engenheiro de som que é filho de uma amiga da mãe, Naomi dá por si engavetada num papel que não procurava forçosamente: o da jovem com o futuro à sua frente que se torna para os homens que a rodeiam, acomodados a uma rotina resolvente, num potencial affaire rejuvenescedor que os faça ainda sentir vivos. Mas não é bem isso que ela quer.

Embora Naomi seja o centro gravitacional do filme, Ross Perry torna Golden Exits num caleidoscópio de pontos de vista em constante rotação, saltando entre Naomi, Buddy e a esposa Jess, Nick e a esposa Alyssa, Gwen, irmã de Alyssa, e Sam, irmã de Jess e assistente de Gwen. Passamos a hora e meia a tentar perceber quando é que toda a gente vai perceber que se conhece, até porque Alyssa é psiquiatra, o espólio cria tensões entre a irmã controlada e o marido quase autista, há histórias mal resolvidas entre as irmãs, enfim, o  drama constante de quem não tem mais nada a fazer a não ser queixar-se da vida que não tem em vez de viver a vida que quer. Mas isto é Brooklyn e não Manhattan. Ross Perry pode ter talento para as noitadas Allenianas mas o seu humor é mais desesperado, mais ácido, menos confortável: o filme resiste a atar tudo muito bem atadinho com um lacinho, recusa-se a cruzar estas personagens todas apenas porque sim, Ross Perry é Naomi, de fora a olhar para dentro e a perguntar-se porque é que está gente é toda assim.

Rodado por Sean Price Williams com os tons primaveris e os planos desenvoltos que reconhecemos do cinema da nova Hollywood dos anos 1970, acompanhado por uma partitura modestamente melancólica de Keegan de Witt, interpretado por um elenco de conjunto em perfeita sintonia onde ninguém se destaca, Golden Exits é um filme impossivelmente nova-iorquino que pode reproduzir as neuroses que reconhecemos ao género, mas que não se limita a imitar o que ficou para trás. Ross Perry é formalmente mais "descuidado" que os seus mentores, mas é um descuido deliberado, programado; os cortes abruptos, as elipses narrativas, a brutalidade verbal e emocional que não é aqui escondida pelo humor são elementos que marcam Golden Exits como um filme que tem uma sensibilidade própria, contemporânea, pessoal. 
Temos para nós que, se Woody Allen fosse cineasta, hoje, em 2017, se chamaria Alex Ross Perry. Ainda nunca um filme seu estreou em Portugal (embora o Indie Lisboa os tenha mostrado), começa a ser altura de corrigir essa falha.
 

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