Luís Lopes quer estagnar o tempo com a guitarra

No primeiro fim-de-semana do décimo Festival Rescaldo, Luís Lopes apresenta na Culturgest, em Lisboa, uma música marcada pela loucura, a tristeza e solidão sob a forma de um requiem.

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Luís Lopes Vera Marmelo

Mark Corroto, afamado crítico norte-americano do site especializado All About Jazz, na sua recensão a Love Song, álbum de guitarra solo de Luís Lopes, descrevia-o como um irmão de sangue do clássico de Frank Sinatra In the Wee Small Hours, dada a partilha de um ambiente marcado pelo profundo desgosto amoroso. E estava certo. Love Song é a colecção de pequenos arremedos de canções para guitarra que Luís Lopes foi improvisando nalgumas sessões nocturnas, fechado no seu quarto, enquanto procurava consolo para uma relação amorosa deslaçada. As notas extraídas do instrumento funcionavam como um desabafo, uma maneira de deitar para fora o sentimento de perda que o consumia.

Publicado em finais de 2016 pela Shhpuma, editora umbilicalmente ligada à Clean Feed, Love Song causaria surpresa pelo registo limpo de um guitarrista que, nos últimos anos, conquistou notoriedade com uma linguagem ancorada no jazz mas com uma profunda dívida ao rock, ao punk e ao noise, explorada sobretudo nas formações Humanization 4tet (com Rodrigo Amado, e Aaron e Stefan González) e Lisbon Berlin Trio (com Robert Landfermann e Christian Lillinger). Mas espantaria mais ainda pela comparação com o seu álbum anterior em modo solitário, Noise Solo, gravado na Galeria Zé dos Bois. Para Luís Lopes, que este fim-de-semana apresenta os frutos de Love Song na Culturgest, Lisboa, no âmbito da décima edição do festival Rescaldo, é impossível destrinçar uma diferença efectiva entre a linguagem agora empreendida e aquela a que se dedicou no passado.

“Talvez me tenha educado em termos artísticos”, reflecte Luís Lopes sobre a ausência de fronteiras que estabelece entre música com uma aparência mais ordeira e uma outra que “pode parecer agressiva, violenta, obscura e extrema”. “Quando ouvi a gravação de Noise Solo, achei aquilo muito poético e romântico”, diz. “Da mesma maneira que em Love Song está também a obscuridade, o desespero, a tristeza, a solidão e a loucura do disco noise.” Algo que compara à pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. “Olha-se para aqueles quadros e tudo existe ali.” Ou seja, não é cada quadro que isola determinadas características ou certos sentimentos, apenas os dispõe de uma forma distinta. Tal como não é o som limpo ou o recurso à distorção ou a efeitos a exigir do guitarrista a investigação de diferentes questões. Com cada novo projecto ou cada novo disco, acredita, aquilo que exercita é uma diferente perspectiva sobre essas mesmas questões.

Em ambos os casos (Noise Solo e Love Song), a gravação surgiu como uma necessidade de Luís Lopes se “ver de fora”. Precisava criar alguma distância em relação à música que estava a fazer, perceber até que ponto fazia sentido e que outras portas se abriam com essas explorações. As apresentações de Love Song em concerto, sobretudo aquela que teve lugar no Teatro Maria Matos, em Maio passado, e a presente no Festival Rescaldo são, afinal, o início de uma outra música saída do disco original. Se Love Song se organizava em pequenas peças, ligadas entre si e com um elevado teor de improvisação, essas pistas deram origem a uma peça de 50 minutos escrita com premeditação e que será a base do concerto na Culturgest este sábado.

Requiem, assim se chama a nova peça, lida com uma das inquietações mais frequentes na criação artística: a relação entre o indivíduo e o tempo. Luís Lopes quis, por isso, criar música que almejasse alcançar a estagnação temporal, um momento esticado quase numa hora mas que funcionasse como um todo, extirpado de qualquer recta cronológica. Como se fosse um escape para um outro universo, sem obedecer a uma lógica de passado, presente e futuro, tudo confluindo para um mesmo instante, comum a toda a música.

O Rescaldo arranca esta sexta-feira com actuação de Marco Franco (bateria solo) e Bruno Pernadas Quarteto. No sábado, além de Luís Lopes, a Culturgest recebe ainda o projecto de Ana Deus Bruta, em torno de uma poesia marcada pela doença mental. No domingo, será a vez da trompetista Susana Santos Silva se apresentar sozinha no Panteão Nacional. O segundo fim-de-semana do Rescaldo terá como protagonistas, na Culturgest, Live Low, Jejuno e David Maranha + Paal Nilssen-Love (sexta,17), Älforjs, Ondness e Pega Monstro (sábado, 18).

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