Django perdoa? Nós, não

Etienne Comar não filmou a vida de Django Reinhardt, mas meteu-o num convencionalíssimo filme de guerra que é uma das mais desinspiradas aberturas de Berlim em anos. A música é boa, mas o filme é fraco.

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Os actores Reda Kateb Cecile de France no filme Django LUSA/BERLINALE / HANDOUT
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Reda Kateb em Django LUSA/BERLINALE / HANDOUT
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Reda Kateb em Django LUSA/BERLINALE / HANDOUT
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A actriz Cecile de France, o realizador Etienne Comar e o actor Reda Kateb Reuters/FABRIZIO BENSCH
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Os actores Reda Kateb Cecile de France Reuters/AXEL SCHMIDT
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Reda Kateb na conferência de imprensa em Berlim Reuters/AXEL SCHMIDT
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"Venho à espera de filmes controversos!", dizia o sulfuroso holandês Paul Verhoeven, presidente do júri de Berlim, em entrevista ao jornal Süddeutsche Zeitung. Berlim, afinal, tem a reputação de ser um “festival do tema” — ainda no ano passado, o Urso de Ouro foi para o documentário de Gianfranco Rosi sobre os refugiados, Fogo no Mar. O actor Diego Luna, na conferência de imprensa de apresentação do júri do qual faz parte (com as actrizes Maggie Gyllenhaal e Julia Jentsch, a produtora Dora Fourati, o realizador Wang Quan’an e o artista Olafur Eliasson), completava as declarações do seu presidente: "Não estamos aqui para enviar mensagens, mas para ouvir vozes diferentes, para as celebrar."

Como abertura, contudo, há que dizê-lo com frontalidade: Django, primeira realização do francês Etienne Comar, não surpreende, não cria controvérsia, não convence, não traz nada que justifique a atenção. É uma das mais desinspiradas escolhas para a abertura de Berlim em bastante tempo, o exemplo perfeito de um filme que tem ideias mas que não tem a arte para as levar a cabo. Tem, ainda assim, uma coisa a seu favor: o olhar sobre o modo como o regime nazi tratou a etnia cigana, que raramente o cinema dito mainstream explorou. Mas mesmo esse olhar sobre os ciganos se perde numa abordagem algo canhestra, cheia de boas intenções mas incapaz de evitar os lugares-comuns mais puídos. É caso para dizer que Comar, produtor (de Xavier Beauvois, Maiwenn ou Abderrahmane Sissako) e argumentista, não tem unhas para a guitarra que quis tocar – e, ainda por cima, é a guitarra de Django Reinhardt (1910-1953). E se a música continua a ser muito boa, o filme não lhe faz justiça nenhuma.

Esse é o primeiro problema: não vale a pena vir aqui à espera de uma biografia tradicional de Reinhardt, nem de um olhar sobre a sua música, porque o que Comar faz, adaptando uma “biografia ficcionada” do guitarrista escrita por Alexis Salatko, é muito mais uma convencional história de um homem em processo de aprendizagem da cidadania e da resistência. Reinhardt, interpretado por Reda Kateb com presença mas sem convicção, é a coqueluche da Paris ocupada durante a Segunda Guerra Mundial e recebe um “convite” daqueles que não se podem recusar para tocar na Alemanha, mas só depois de compreender que os ciganos estão a ser alvo da perseguição nazi é que a sua consciência acorda. O músico que só queria fazer música percebe que, afinal, não pode escapar à sua identidade de cigano; herói entre os seus por ter conseguido uma aclamação internacional (que até os alemães, até certo ponto, admiravam), percebe que esse estatuto arrasta consequências que não pode ignorar.

E arrasta também o segundo problema: Django transforma-se numa daquelas histórias de abnegação e heroísmo em tempo de guerra que fizeram as grandes horas do cinema nos anos 1950 e 1960. Muitos dos factos que Comar intercala na sua narrativa ficcionada são verídicos, o filme teve a bênção dos herdeiros de Reinhardt, e — à excepção de Kateb e de Cécile de France, no papel de uma patrona das artes com aparentes amizades equívocas — os actores secundários são não-profissionais, oriundos da comunidade cigana ou músicos. Mas essa vontade de realismo escorrega brutalmente na casca de banana do lugar-comum simplista da aventura de guerra. E Django sofre o mesmo destino que o lendário swing contagiante do guitarrista belga, ao ser manietado pelas regras metronómicas dos censores nazis: música de fundo para jantares de gala, ou, no caso, telefilme preguiçoso de domingo à tarde.

A ideia de pegar num artista que descobre que não pode fugir a tomar partido pela simples dignidade e humanidade é boa. É até perfeitamente relevante para os nossos dias. Mas para isso era preciso que Etienne Comar fosse capaz de lhe injectar energia ou urgência. É uma entrada com o pé esquerdo para Berlim 2017, à espera de que o que aí vier compense o tropeção — com ou sem controvérsia.

 

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