Philippe Parreno suspende a nossa atenção

“Não quero falar sobre objectos, quero falar sobre espíritos”, diz Philippe Parreno, afirmação que podia bem podia ser o emblema da conversa que teve com o Ípsilon como da exposição que apresenta no Museu de Serralves.

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Paulo Pimenta

Philippe Parreno, nascido na Argélia em 1964, de onde partiu para Paris onde vive e trabalha, é um dos nomes mais importantes da arte contemporânea. Em conjunto com Douglas Gordon, Gonzalez-Foerster, Liam Gillick, Pierre Huyghe ou Rirkrit Tiravanija, faz parte de um importante grupo de artistas surgidos na Europa nos anos de 1990 e que têm na chamada arte relacional o seu modelo de prática artística. Ou seja, um entendimento da arte enquanto resultante de um processo de negociação e troca entre artista e público e os contextos sociais em que as práticas artísticas são desenvolvidas e que teve no livro de Nicholas Bourriaud, Estética Relacional (1998), a sua grande sistematização.

Fez importantes, e muito reconhecidas, exposições no Guggenheim de Nova Iorque (2008), no Centro Pompidou (2009), no Philapdelphia Museum of Art (2012) no Barbican Center de Londres (2013), para além de ter participado em inúmeras bienais (Veneza, Lion, Instambul, entre outras). Em 2013 tranformou completamente todas as salas do Pallais Tokyo, em Paris, com música, vídeo, performance, objectos de diferentes proveniências, através dos quais levou os visitantes numa viagem de metamorfose e entrega. Presentemente ocupa a Turbine Hall da Tate Modern em Londres com uma instalação multimédia que, através de um sofisticado sistema de inteligência artificial, se vai transformando: um mundo de imersão subaquática onde peixes e animais estranhos ocupam a imaginação a visão dos visitantes e o levam a uma total imersão numa obra pública. Em todas as exposições, e como disse em entrevista ao Ípsilon, há uma nota comum: a não existência de objectos completos e terminados que o público só tem de contemplar. As suas exposições fazem sempre do espaço expositivo um elemento fundamental da sua construção: as galerias não são espaços a ser ocupados pelas obras, mas elementos das próprias obras.

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Em Serralves encontrou o desenho arquitectónico adequado para fazer as suas obras flutuar pelo espaço usando-o como elemento material e formal do seu trabalho Paulo Pimenta

Para Portugal não quis trazer trabalhos antigos e já explorados em outras exposições e, por isso, decidiu fazer uma exposição sem nenhum dos seus famosos filmes ou vídeo instalações. Em Serralves encontrou o desenho arquitectónico adequado para fazer as suas obras flutuar pelo espaço usando-o como um elemento material e formal do seu trabalho. Como ele diz, a atenção ficar suspensa. Ocupou todas as 17 salas com 10m mil balões (que reúnem todas as suas séries das icónicas Speeche Bubles que vem a desenvolver desde 1997), 200 desenhos de pirilampos e, no final, acrescentou uma sala virtual que o visitante, através de um sofisticado sistema de projecção e realidade virtual pode aceder no auditório de Serralves.

A percorrer a exposição existe uma banda sonora onde se acentua a experiência de repetição que o artista quis explorar e que, através de um sistema de inteligência artificial, adopta a Fuga nº 24 de Dimitri Shostakovich como modelo e se materializa nas interrupções da iluminação e nas interferências ruidosas geradas pela interferência no sistema eléctrico geral do edifício.

Esta é uma exposição radicalmente diferente de todas as que fez e em que a ideia de repetição é levada quase ao limite.
Trata-se de um diálogo com a arquitectura do museu e com o modo cada uma das salas se repete ao longo de todo o edifício. A partir dessa sequência espacial, montei uma estratégia para esta exposição que quis que fosse diferente de todas as outras e em que a repetição fosse o tema central. No principio até pensei ser mais radical e fazer a mesma exposição 17 vezes, ou seja, repetir a mesma obra ao longo de todas as salas do museu. Mas fiquei preso à ideia de variação, isto é, há repetição mas através dela surge a diferença, tal como dizem Deleuze e Guatarri.

Mas o que é que o fascinou na arquitectura de Siza Vieira?
Anteriormente tive de lidar com grandes espaços industriais, como o Palais Tokyo em Paris ou a Turbine Hall em Londres, em que os espaços não foram desenhados para ser museu. Eem Serralves encontrei a precisão do desenho do Siza. Por contraste com aqueles outros espaços, que são ruinas aproveitadas para museu, aqui todo o espaço é cuidado e muito estruturado.

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Paulo Pimenta

Essa sua preferência contraria a maior parte dos artistas contemporâneos que reagem fortemente à arquitectura contemporânea de museus.
Eu sei, mas tenho trabalhado com espaços de grande escala e desta vez foi importante ter outra experiência. É a primeira vez que estou num espaço deste tipo. E gosto muito. E depois esta minha atenção ao espaço relaciona-se com o facto de cada exposição minha ser muito específica ao contexto onde se desenvolve. A fisicalidade dos espaços é decisiva na maneira como tento desenvolver o trabalho.

E agrada-lhe a ideia de museu?
Agradou-me trabalhar com a expectativa que se tem de num museu haver objectos e no meu trabalho eles não existirem. Não é uma ideia estranha, porque se pensarmos bem a arte é um conjunto de objectos que, mais ou menos, se vão repetindo. Aqui juntei, pela primeira vez, muitos trabalhos que nunca tinham estado juntos e o desafio foi tentar perceber se tantas obras feitas em diferentes tempos e diferentes lugares podiam produzir uma exposição.

Esta sua estratégia de repetição relaciona-se com o facto de, como se diz, as suas obras não serem objectos mas quase-objectos?
É mesmo isso. Até os 200 desenhos que estão nesta exposição, emoldurados e ortodoxamente colocados na parede, não são bem objectos. Comecei a fazê-los nas minhas sessões de quimioterapia e só os fiz porque tinha de me ocupar com alguma coisa que me libertasse do inferno que estava a viver. Foi uma espécie de gesto mágico de evasão. Depois comecei a dá-los a diferentes amigos porque nunca pensei neles como uma obra para ser exposta.

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Apesar de as obras de Parreno serem iconográficas e fotogénicas, exigem que o visitante se constitua como um colectivo que, de cada vez e a cada visita, inventa a arte Paulo Pimenta

E depois quando percebeu que gostava de os mostrar pediu-os de volta aos seus amigos?
Um dia fiquei com vontade de os ver juntos e de perceber que tipo de constelação é que podia construir com eles. E fui buscá-los.

São muitos desenhos que formam quase uma linha ao longo de todo o museu.
Exacto. Fazem parte da ideia de repetição que tento desenvolver nesta exposição. Bem como a maneria como as esculturas [feitas de tomadas eléctricas e luzes de presença e colocadas nas tomadas do chão de Serralves], uma série inspirada em desenhos do arquitecto finlandês Eero Saarinen, que interferem com o todo da electricidade do edifício e produzem um som que aparentemente se repete. Um som que, à semelhança do som dos pirilampos que estão nos desenhos, é repetitivo mas descontinuo.

A quase inexistência de objectos e a maneira como organizou esta exposição faz-nos lembrar uma espécie de mise-en-scène.
Gosto muito de usar essa ideia e relacioná-la com a exploração da atenção do visitante. Esta exposição é uma mise-em-scène para a atenção. E para mim esta é uma forma, não autoritária, de suspender a atenção dos espectadores das exposições por oposição ao ritmo frenético do consumo contemporâneo de arte e de imagens.

É como se esta exposição fosse um cenário para um acontecimento por-vir.
É isso. E esta é a minha forma de trabalhar: sou um artista conceptual que não faz planos, mas produzo estruturas de coisas, de acontecimentos.

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Gosta da ideia do seu trabalho se produzir a ele mesmo e não depender da vontade externa e alheia do artista?
É verdade que o meu trabalho se produz a ele mesmo quase de forma automática. As minhas primeiras speech bubbles surgiram num período em que havia muitas manifestações em França e pensei que seria interessante desenhar uma ferramenta onde cada um dos manifestantes pudesse inscrever a sua luta e a sua imagem. Fiz esses balões e dei-os aos manifestantes e o que sobrou foi o que levei para uma exposição. E foi esta ideia de manifestação que produziu automaticamente a obra de arte. Depois comecei a experimentar mudar as cores ao ponto em todos esses balões se encontraram numa única exposição, o que acontece aqui em Serralves. E esta é a minha forma de trabalhar: para mim a arte é negociação entre diferentes instâncias, sujeitos, contextos sociais e com a realidade. É como uma bola de futebol: se levarmos 22 homens para um campo e não lhes dermos nada, provavelmente teremos uma guerra, mas se lhes dermos uma bola temos um jogo de futebol. A bola em si mesma, enquanto objecto, é inútil, incompleta, mas quando se joga com ela produz-se um jogo. E as obras de arte são estes quase-objectos que em si mesmas não são nada, mas que possibilitam a formação de uma colectividade e que estão na base da invenção de novos rituais.

Essa possibilidade de as obras de arte poderem inventar novos rituais é o ingrediente político do seu trabalho?
Sim. Gosto da ideia dos objectos estarem sempre a ser modificados pelas pessoas e pela história. Por exemplo, uma obra de arte depois de uma exposição fica alterada, bem como os nossos olhos e a maneira como olhamos para essa obra. As obras de arte estão num permanente estado de reinvenção.

E esta é a única maneira de um artista fazer politica? Não seria mais útil denunciar claramente o estado do mundo?
Provavelmente, mas eu só sei fazer assim. Talvez devesse ser menos metafórico, mas só sei fazer desta maneira.

O seu filme tão famoso sobre o futebolista Zidane [Zidane: A 21st Century Portrait] é uma obra politica? Ou resulta do seu fascínio por um herói francês que, por acaso, é filho de imigrantes de um país árabe ligado ao terrorismo?
É as duas coisa. Estava encantando com Zidane e propus a Douglas Gordon, com quem fiz este filme, experimentar o desafio de estar 1h30 a olhar para um único rosto. Mas claro que o facto de se tratar de um rosto árabe, herói num país racista como a França, me interessou muitíssimo. Mas este filme é sobretudo uma conversa entre mim, Douglas Gordon e o próprio Zidane. Esta ideia de conversa e colaboração mostra um dos aspectos importantes da arte que é o facto de se tratar, fundamentalmente, de uma negociação.

Como é que um artista conceptua diz, como afirmou à revista New Yorker, não gostar de ter ideias?
Não gosto mesmo de ter ideias e não as tenho. As obras surgem de uma prática e de uma atenção quotidianas. Claro que tenho ideias, mas a minha prática tem outras origens.

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Paulo Pimenta

Quando fala de repetição não tem medo que o publico não veja unicamente monotonia?
São muitos desenhos e muitos elementos que se repetem, mas é aí que está o desafio com a atenção: podemos ficar aborrecidos, mas no fim percebemos o modo como a atenção se vai alterando. O desafio é idêntico ao do filme sobre Zidane: 1h30 minutos a olhar sempre para a cara da mesma pessoa. Esta questão da atenção é importante para mim: as pessoas olham cinco segundos para uma obra e já está e consomem a arte como se fosse um facto qualquer. Come-se e esquece-se. E aqui tento uma coisa diferente. Sou uma espécie de escritor que tenta conduzir a atenção das pessoas para sítios diferentes.

E os desenhos dos pirilampos?
Vêm de Pasolini e do texto dele sobre a situação politica em Itália publicado num jornal italiano em 1975. Os pirilampos activam uma certa crença. Por exemplo no sul de França não há pirilampos mas as pessoas acreditam na sua existência, e porque, segundo algumas tradições, a luz deles é uma luz do inferno. No meu caso pessoal, assinalam a minha saída de um período negro: são o abandono da escuridão onde estive.

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