As horas em que a troika esteve em parte nenhuma

Parece que o correspondente do Financial Times foi o jornalista que descobriu um buraco na agenda da delegação da troika em Lisboa, quando vieram negociar o resgate, pela Páscoa de 2011: os homens tinham desaparecido por um par de horas. O tempo do discreto pequeno-almoço, soube-se depois, foi passado no palácio da Nova Business School com alguns economistas lusos e foi um encontro feliz: “Eles (os da troika) estavam desejosos por ouvir as nossas ideias”, contou o director da faculdade, José Ferreira Machado. “Num país pequeno como o nosso, as principais faculdades de Economia são em certo sentido co-líderes da nação de um modo que não seria possível nos países maiores”, acrescentou ufano. “Somos o ponto de encontro das elites de hoje e de amanhã e a nossa obrigação é indicar aos futuros líderes do país as direcções possíveis”, explicou ainda. O resultado é sabido, o memorando da troika: “[Tem] a marca intelectual da nossa escola”, esclareceu Ferreira Machado ao Financial Times.

O director escreveu então, num livro com os seus “co-líderes”, que, “se levadas a cabo com entusiasmo e rigor, estas reformas mudarão Portugal para melhor” e que “a crise forçou a cooperação e silenciou as reservas sobre este modelo económico”. Do sucesso destas “reformas”, levadas com “entusiasmo e rigor”, já se sabe e não é com essa questão que incomodo os leitores. O que quero sublinhar é a lógica explícita e a implícita desta “marca intelectual”.

A explícita é o que Passos chamou "o empobrecimento". Olivier Blanchard, então economista chefe do FMI, tinha explicado que “a redução dos salários nominais parece exótica, mas é o mesmo na essência que uma desvalorização bem sucedida”. Para isso, explicava ele, é necessário um “período sustentado de grande desemprego”, com um “ajustamento que é provável que seja longo e doloroso”, com “tantos anos de elevado desemprego quantos necessários para convencer os trabalhadores da necessidade do ajustamento”. Há poucos dias, três economistas do Banco de Portugal, suponho que incluindo um dos co-líderes que mata-bichou com a troika nos idos de 2011, teorizou também que os contratos colectivos devem ser limitados, se os salários baixos são a boa condição económica. Quando ouvir falar de “reformas estruturais”, já sabe que é disto que se está a tratar, é tudo Padaria Portuguesa.

É claro que tanta agressividade ideológica havia de ser chamada à pedra. Mesmo dentro do FMI, alguns economistas desmentiram as soluções da “marca intelectual”, suscitando um ralhete dos seus chefes. Ficam os factos a tirar teimas: a estagnação e portanto a divergência entre economias, a crise permanente das dívidas e o risco de nova recessão dizem tudo.

Mas há também uma lógica implícita nesta “marca intelectual”, que é o cimento do orgulho tribal dos “co-líderes da nação”. Paul Romer, distinto académico e agora economista-chefe do Banco Mundial, escreveu uma diatribe contra essa “marca”, criticando os erros matemáticos na identificação dos modelos, o arbítrio na definição de causalidade, a convocação de variáveis imaginárias para explicar os acontecimentos, a regressão intelectual desta pós-realidade e o ambiente académico de devoção acrítica pelos co-líderes. Foi uma tempestade.

Mas a questão é esta: como é que pessoas inteligentes aceitaram trabalhar com hipóteses tão mirabolantes e blindar os seus modelos em relação à realidade? Uma resposta é a religiosa: converteram-se a uma noção transcendente que afirma que os mercados têm sempre razão porque a razão do comportamento humano é o egoísmo ambicioso.

Mas já era assim lá atrás, quando o palácio dos economistas se entusiasmou com o desemprego de massas por “tantos anos” e com o corte das pensões da Segurança Social, não é certo?

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