O dia em que Otelo foi Salazar e Catarina Furtado foi Marilyn

Criação de Helder Costa para A Barraca, os Encontros Imaginários já puseram 396 figuras da História Universal na voz de 205 personalidades nacionais. Esta segunda-feira fazem seis anos e há festa.

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Helder Costa, director (com Maria do Céu Guerra) do grupo de teatro A Barraca PEDRO CUNHA

Imaginam o que seria Otelo a fazer de Salazar? E Bagão Félix de Infante D. Pedro? E Inês de Medeiros de Joana d’Arc? E o padre Vítor Melícias de Gil Vicente? E Catarina Furtado de Marilyn Monroe? E Fernando Tordo de Al Capone? E Ana Gomes de Eva Braun? E Vasco Lourenço de Marquês de Pombal? E Fernando Rosas de Napoleão? E Assunção Esteves de Audrey Hepburn? E Jorge Palma de Cole Porter? Escusam de imaginar, porque já fizeram. Eles e mais umas largas dezenas de personalidades das mais diversas áreas profissionais e políticas encarnaram, até hoje, 396 figuras da História Universal. Onde? No grupo de teatro A Barraca, em Lisboa, numa série a que o seu criador, o encenador e dramaturgo Helder Costa, chamou Encontros Imaginários.

Como noutras situações, foi a necessidade que aguçou o engenho. Num momento em que o grupo passava por dificuldades económicas, Costa começou a pensar em novas fontes de receita. E resolveu ocupar as noites de segunda-feira (dia de folga da companhia) com um formato que já tinha experimentado antes, na televisão, com Joaquim Letria e Carlos Cruz. E foi assim que, no dia 7 de Fevereiro de 2011, se “enfrentaram” três personagens: Humberto Delgado, por João d’Ávila; Salazar, por Sérgio Moura Afonso; e Soror Mariana, por Vânia Naia. “Nos primeiros dois anos foi feito por actores, aqui da equipa ou vindos do teatro”, diz Helder. “Se fosse uma pequena peça de teatro não acredito que tivesse tanto êxito. O êxito é estar fora da cerimónia e da importância do que é um espectáculo de teatro, é transmitir a ideia de que ‘se calhar isto é mais simples, até eu podia fazer’”. Esta ideia levou-o, depois, ao passo seguinte. “Ao fim de dois anos pensei fazer uma comemoração, repetindo o primeiro encontro. E quis experimentar uma coisa. Telefonei ao Otelo e perguntei-lhe se ele não gostaria de fazer o Humberto Delgado. Ele disse ‘Eh pá, com certeza!’ Depois convidei o Miguel Real [escritor] para fazer o Salazar e a Iva Delgado [filha do General sem Medo] para fazer a Soror Mariana. Isto foi uma espécie de grande acontecimento, de casa cheia, e foi muito interessante.” Estava dado o segundo passo.

Conhecimento e humor

Depois, por convite ou por passa-palavra, a lista de participantes foi crescendo. “Estas pessoas têm uma vantagem incrível”, diz Helder. “Têm cultura, têm conhecimento. Os personagens, eles sabem quem são. A única coisa que tenho de lhes dizer é que não decorem o texto e que não representem, sejam normais, porque se trata de uma leitura. E então funciona bem.”

Como é que ele cria os textos? “Penso num personagem e depois vejo quem é que podia estar com ele. E aqui há duas opções: ou é um elemento-chave em contradição (houve um em que eu pus o padre António Vieira, o Maquiavel e o Nero), outras vezes pode ser um encontro em que os três conduzem a uma explicação sociológica e cultural de uma era. O que é fundamental é o humor. Porque se não tiver humor fica seráfico, uma coisa académica só, e isso não é bom.” O que se vai passando no mundo também o inspira. “Às vezes estou perante uma determinada situação social, penso fazer uma intervenção e vou buscar personagens que reflectem preocupações sobre a democracia, as ditaduras, a liberdade. É um mundo enorme, inesgotável.”

Foi vendo crescer as suas figuras em “representantes” à altura. Por exemplo, quando em 2015 quis repetir o “encontro” de 2013, em comemoração, foi Otelo que “falou do gosto que teria em interpretar Salazar”. Ele fez-lhe a vontade. “E foi lindíssimo, até porque ele é um actor!”, diz Helder, que também recorda Bagão Félix como um Infante D. Pedro “magnífico”.

Além do êxito na sede do grupo, a ideia multiplicou-se. Já foi recriada em Guimarães, Sagres, Amadora, Faro, Coimbra, Grândola, Albufeira, e também fora do país: Madrid e Barcelona também já acolheram Encontros Imaginários. “Pedem-me os textos e eu dou-os. Noutros sítios apanharam a ideia, encontraram figuras da terra, e fizeram. O que me agrada imenso, porque isso é que é interessante, é criar uma nova linha de antropologia e intervenção cultural.”

Agora, os Encontros Imaginários chegam à sua 132.ª edição e Helder Costa quis fazer uma festa. Esta segunda-feira, n’A Barraca, Salgueiro Maia (na voz do formador de teatro Adérito Lopes), Kaúlza de Arriaga (pelo militar de Abril Matos Gomes) e Maria Veleda (pela activista de direitos humanos Ana Filgueiras) vão “conversar” entre si. Às 21h30, com entradas pagas (como de costume). Depois, haverá uma sessão musical com “canções populares e de protesto portuguesas e internacionais”, com Carlos Alberto Moniz, Francisco Fanhais, Vítor Sarmento, Jacqueline Mercado e Rui Meira. Além disso, anuncia-se no programa, haverá intervenções de Maria do Céu Guerra e de A Barraca. “Culto sem ser elitista e popular sem ser populista”, diz uma das siglas que identifica os Encontros Imaginários. Está, assim, justificado o convite.

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