Lembram-se da TINA?

É esta a realidade que a Europa tem de enfrentar. Sem sonhos de grandeza ou hipocrisias.

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1. Passaram duas semanas desde que Donald Trump entrou na Casa Branca, que funcionaram como uma espécie de sismógrafo, registando o terramoto que está a provocar no mundo inteiro. O Presidente americano superou as piores expectativas, fazendo um grande favor a toda a gente: não cair na tentação de desvalorizar o significado da sua eleição. Mas é preciso que a poeira assente para se olhar com mais atenção para a mudança radical da política externa norte-americana, ou seja, da única e poderosa superpotência mundial. Essa mudança vai prevalecer, mesmo que se apresente, por vezes, menos radical. É preciso contar com ela e é preciso, sobretudo, lidar com ela. A Europa está no centro desta mudança porque viveu até hoje sob a protecção de uma sólida aliança transatlântica e porque percebeu, depois de alguns sonhos de grandeza, que esta aliança era tão importante no pós-Guerra Fria como foi durante o equilíbrio do terror, quando a fronteira entre dois sistemas e duas ideologias antagónicas a dividia ao meio.

2. Começemos pela cimeira informal de La Valetta, na sexta-feira. Os líderes europeus evitaram exageros retóricos para classificar o novo Presidente. Houve nuances, naturalmente. Nenhum morador do Eliseu, desde De Gaulle, perde uma oportunidade para “acariciar” o ego antiamericano dos franceses. François Hollande falou um pouco mais grosso, aconselhando Trump a não interferir nos assuntos internos da Europa e (pasme-se) criticando o seu proteccionismo. Tal como Merkel, rejeitou a oferta britânica de fazer de “ponte”, que Theresa May levou para Malta. O ainda Presidente francês foi leal aos Estados Unidos durante os anos de Obama, confirmando que o centro-esquerda não é certamente o maior cultor do “gaullismo” anti-americano que caracteriza sobretudo a direita francesa. A conclusão é o que importa e essa foi clara: a relação transatlântica tem de ser preservada para além do actual Presidente. A segunda conclusão, fácil de dizer mas difícil de fazer, é que a Europa vai ter de esforçar-se muito mais por si própria, se quer continuar a ter influência mundial e a responsabilidade inerente.

O que é mais preocupante é que os líderes, quase todos, separaram nas suas declarações a opinião sobre Trump e a realidade política europeia, onde hoje florescem toda a espécie de “mini-Trump”, cada vez mais próximos do poder e cada vez mais influentes na agenda política dos respectivos países. Trump dá-lhes uma alma nova. Não são dois mundos à parte. São duas tendências que se cruzam em muitos aspectos e que representam um enorme desafio às democracias ocidentais, seja nos EUA, seja na França ou na Alemanha, na Holanda em Itália ou no Reino Unido. O "Brexit" é fruto dessa tendência profunda. Mas a quase certa vitória de Le Pen na primeira volta das presidenciais francesas também é. Tal como nos Estados Unidos, a revolta contra as elites e a rejeição (ou o ódio) aos “outros” abalam perigosamente as estruturas democráticas europeias. Basta olhar, de novo, para a França, onde os perdedores da globalização vêem a elite formada nas “Grandes Écoles” agir como se estivesse acima de qualquer critério moral.

3. Mas esta não é sequer a questão política central que os europeus enfrentam, quando olham para a Sala Oval e vêem lá alguém disposto a destruir os pilares da relação transatlântica, que garantiram a paz e a prosperidade nos últimos 70 anos. A Europa pode singrar sozinha num mundo que nunca lhe foi tão adverso? Pode reforçar a sua defesa, aumentando os gastos e tentando compatibilizar armamento. Sozinha e dividida quanto ao seu lugar no mundo, não está em condições de combater o seu declínio estratégico e defender os seus interesses e os seus valores, dispensando os EUA. Não vale a pena cair na tentação de que há alternativas. A parceria com a China pode aumentar as trocas comerciais, mas qualquer governo ou empresário conhece os muitos entraves que Pequim coloca ao investimento estrangeiro, a falta de regras estáveis nos seus mercados ou o respeito pela propriedade intelectual. Xi Jinping pôde apresentar-se em Davos como o “timoneiro” do livre comércio mas representa um regime ditatorial que não respeita a lei internacional, desde que isso não lhe convenha (vide o conflito latente no Mar do Sul da China, provavelmente o sítio mais perigoso do mundo, se houver uma falha de comunicação entre Pequim e Washington). A Europa pode fazer o melhor acordo de comércio livre com o Japão, mas não pode garantir a sua segurança nem impedir que Pyongyang cometa uma qualquer loucura. A Rússia pode comungar da História e da cultura europeia, mas nada faz prever que seja um parceiro fiável, quando se trata de garantir a estabilidade nas fronteiras da União a Leste como a Sul. Um qualquer acordo com Putin teria como preço o sacrifício da sua parte Leste (e não só na Ucrânia). O único objectivo do Presidente é alargar a zona de influência da Rússia até às fronteiras do passado. Um dos mais reputados especialistas europeus da Ásia-Pacífico, François Godement, resumia o dilema europeu (entre Trump e a China), numa frase: “Uma ordem multilateral com a China e sem a América é, pura e simplesmente, impossível”. “É aqui que a Europa está no início de 2017”. A Ocidente, Donald Trump, “desprezando a NATO” e a integração europeia. A Oriente, Xi Jinping, “envergando o manto da defesa da globalização, das instituições multilaterais, do respeito pelas leis e do desarmamento nuclear universal”.

4. Não vale a pena ter grandes ilusões sobre o que nos espera. Jim Mattis, um general da velha escola atlantista que chefia o Pentágono, acaba de realizar uma visita à Coreia do Sul e ao Japão para tranquilizar os dois grandes aliados americanos na Ásia-Pacífico. Os acordos de defesa são para manter, incluindo a defesa colectiva. O novo secretário de Estado, Rex Tillerson, não pertencendo ao establishment da estratégia, é um pragmático. Ouvimos a nova embaixadora (política) na ONU avisar os países membros para não ousarem opor-se aos EUA, sob pena de “irem para a lista”. Disse na sexta-feira que a Rússia viola a lei internacional na Crimeia. O Congresso americano já aprovou novas sanções (ligeiras) contra o Irão, em resposta aos testes com mísseis balísticos que o regime teocrático acaba de realizar. Trump não pára de denunciar o acordo nuclear com Teerão, negociado por Obama com a Alemanha e os com os membros do Conselho de Segurança da ONU. O vice-chanceler alemão, Sigmar Gabriel (que acumula a pasta dos Negócios Estrangeiros), estava de visita a Mike Pence em Washington nessa altura e não deixou de dizer aos jornalistas que compreendia a decisão americana, insistindo, no entanto, que o acordo não era para rever. São bons sinais? Podem ser, mas arriscam-se a não ser o essencial. Na cultura política americana quem manda é o Presidente e nenhum dos membros do seu governo ousa desafiá-lo, mesmo que pense de forma diferente. Foi assim com Collin Powell, Hillary Clinton ou John Kerry. Acresce que os verdadeiros nacionalistas e nativistas estão na Casa Branca, formando uma barreira impenetrável à volta do Presidente.

É esta a realidade que a Europa tem de enfrentar. Sem sonhos de grandeza ou hipocrisias. Sem esquecer, como escreve Natalie Nougayrède, no Guardian, que não há alternativa aos Estados Unidos a não ser o caos. A colunista chama-lhe a reincarnação da TINA, ainda que em ponto muito maior. A Europa levará muito tempo a construir a sua autonomia estratégica, se é que ainda consegue evitar o cenário da fragmentação. Não se trata de rendição. Trata-se de algum realismo. A primeira encarnação da TINA (a máxima There is no Alternative; não há alternativa) deu mau resultado, mas pode e deve ser corrigida. A segunda é ainda uma terrível incógnita. Exigirá unidade e coragem às lideranças europeias, um combate a sério aos populismos nacionalistas e uma visão do interesse comum. É pedir muito? Talvez. Mas não há de facto alternativa.

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