A pós-mentira

Há meses, o PÚBLICO noticiava uma investigação da University College de Londres, publicada na revista Nature Neuroscience, sobre certos aspectos comportamentais das pessoas.

Os resultados evidenciaram que quando a desonestidade aumenta, a reacção no cérebro diminui. Os participantes na experiência fizeram uma ressonância magnética, procurando-se a resposta da região da amígdala (associada às emoções) ao comportamento demonstrado. Com a repetição, o cérebro adapta-se à desonestidade. Há uma adaptação emocional. Tal como acontece com os neurónios do bolbo olfactivo e nos habituamos ao cheiro de um perfume quando entramos num sítio, explicou uma das autoras do artigo. Os cientistas dizem que há um efeito bola de neve, um terreno escorregadio (slippery slope).

Os investigadores concluíram, ainda, que a par da adaptação emocional à mentira, também a magnitude das mentiras aumenta. Mas, quando não houve benefício próprio com a mentira, as pessoas podem ter sido desonestas, mas a desonestidade não aumenta. Assim, não basta mentir muitas vezes para mentir cada vez mais. Para que este efeito se concretize, é preciso também que se ganhe alguma coisa com isso.

E o mesmo princípio também poderá verificar-se com outros comportamentos nocivos, de risco ou violentos.

Estes estudos enquadram-se nas abordagens pós-modernas das questões éticas, procurando explicar alguns factores indutores de atitudes recorrentes, através da neurociência do comportamento.

Os dados parecem confirmar a percepção leiga e comum de que a repetição reiterada de comportamentos eticamente reprováveis provoca uma espécie de anestesia moral no prevaricador. Há quem veja isto como uma patologia ou uma obsessão compulsiva. Na consciência do impostor, o “custo marginal” de uma nova expressão de desonestidade é decrescente, até se tornar nulo. O povo diz que  atrás da mentira, mentira vem … E já Aristóteles perguntava e respondia: que vantagem têm os mentirosos? A de não serem acreditados quando dizem a verdade.

E se é certo que a mentira, a desonestidade e a indecência se desenvolvem, virulentamente, em quem as usa como um falso “padrão de vida”, também medram nas sociedades que olham para quem assim age como ícones senão a seguir, pelo menos a tolerar. Hoje convive-se com o aldrabão e o vigarista encartados – tantas vezes alcandorados a tratamento VIP em certos media – com a normalidade de uma opacidade ética traduzida na ignóbil frase de que são todos iguais. Esta frase, repetida urbi et orbi, estimula a infracção e violenta a virtude. É o preço da indiferença e do relativismo éticos. É na indiferença que se alimentam os “girinos” estagiários antes de evoluírem para impostores encartados.

Aliás, há-os em versão generalista e em modo especialista. E há os mais considerados no “rating” dos falsários que são os “flexíveis”, uma espécie de vigários todo-o-terreno.

O mundo está empestado por estes comportamentos lesivos. E Portugal, evidentemente, não foge à regra. A mentira é uma especiaria, sempre cuidada na forma e ignominiosa no conteúdo. Daí a lucubração da pós-verdade onde os mentirolas, falsários, caluniadores e quejandos se abastecem e disseminam a “arte de bem mentir”. Elogiada, propagandeada, replicada à exaustão nas redes sociais beneficiando do acriticismo de que parecem padecer a maioria dos seus crédulos.

Infelizmente está longe, muito longe mesmo, a descoberta do antibiótico que combata a multirresistência bacteriana da mentira, aldrabice e indecência. Ou seja, a “pós-mentira”.

 

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