A morte não é solução para a vida

Convenhamos que a utilização neste debate do termo “morte assistida” é uma fraude.

  1. Convenhamos que a utilização neste debate do termo “morte assistida” é uma fraude. Este descreve contextos como o dos meus bisavós e avó, acompanhados e vigiados carinhosamente em casa pelos seus entes queridos até ao seu último momento. Ou das pessoas hospitalizadas, que recebem cuidados clínicos dos profissionais de saúde e são vigiadas até ao derradeiro fim. Não é sério reclamar-se a despenalização da “morte assistida” pela simples razão de esta não se encontrar penalizada. Empreguemos a palavra eutanásia, situação substancialmente diferente, que designa a institucionalização da morte a pedido do doente - idealmente, pois nos países onde a lei o autoriza nem sempre assim acontece (na Bélgica foram mais de mil casos) - e executada pelo médico.
  2. O eufemismo empregue na expressão prossegue o efeito de humanizar, para efeitos de aceitação colectiva, uma prática que é reprovada pelas ordens jurídicas em que nos inserimos. Depositárias solenes de uma conquista civilizacional de décadas: o direito à vida de todo o individuo e a sua inviolabilidade, tal como proclamada, a primeira parte, pelas Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direito Humanos, em 1947, e a segunda, na Constituição da República Portuguesa, em 1976. 
  3. A ideia de “boa morte” é, simultaneamente, tentadora e perigosa. Tentadora, porque nos convoca a ajuizar o nosso próprio sofrimento e o de terceiros, em situações fronteira, tarefa que nos impõe o máximo respeito. Perigosa, uma vez que tende a resvalar num vanguardismo relativista (e ilusório) que faz a apologia do suicídio. Desmistifiquemos: a eutanásia não é a suspensão de tratamentos ineficazes que estejam a provocar uma dor disruptiva. É a antecipação da morte de forma calculada e objectiva. Inculcar nas mentes mais desprotegidas a ideia de que para uma morte ser digna é necessário precipitá-la, parece-me um argumento que esteve na origem das eugenias perpetradas na história.
  4. O legítimo receio de sermos submetidos a um sofrimento intolerável contra a própria vontade é contrariável mediante o exercício da liberdade de cada um, desde logo, pelo testamento vital, declaração antecipada de vontade ou consentimento informado. Cumpre à medicina reforçar os potentes instrumentos que dispõe para atenuar a dor e dirimir os efeitos da doença, proporcionando conforto a quem accione aquelas prerrogativas.
  5. O momento desafia-nos a priorizar o investimento na qualidade da vida, a única forma de o seu termo, no instante capital, ser um epitáfio da sua dignidade. Ampliando a rede de acesso aos cuidados paliativos, prestando uma assistência conveniente ao domicílio e facultando apoios sociais adequados. Se este suporte conferido pelo Estado compaginar uma opção disponível para aqueles que dela carecem, o objectivo morte diluir-se-á.
  6. As opções não se resumem a sofrer ou morrer. Que sentido faria que a solução oferecida pela medicina para aliviar o desespero fosse o paradoxo de destruir activamente o valor supremo que visa preservar? Endossar-lhe esse poder é contra a sua natureza milenar. Que confiança merecerá um médico a quem é conferida a permissão de apresentar a morte ao paciente como prescrição? A expectativa é a de que saiba tratá-lo, rejeitando aderir a uma cultura de descarte ou de avaliação segundo o modelo da “rampa deslizante”.
  7. Um quadro de leis que permita matar, estimulada pelo egoísmo social, imprime um risco incontrolável na sociedade. Arruína a relação médico-doente. Dissemina a suspeita no sistema de saúde. Configura novos padrões éticos que, podendo servir a alguns – não discuto – são anti-sociais, por não colocarem a salvo os mais fracos, os pobres, os dependentes, os idosos, da hipótese de uma morte para qual, eventualmente, poderão ser dirigidos. Porque esta franja sente-se um fardo para as suas famílias, ou estão abandonados, ou são incapazes de exprimir a sua vontade, ou vulneráveis a critérios economicistas, que os torna incapazes de custear os tratamentos numa fase terminal, por norma os mais dispendiosos para orçamento familiar e também para o Estado.
  8. A eutanásia não decreta só o fim do suplício. Acaba com a vida, com tudo. Tem um efeito desproporcional em face da real circunscrição do problema, delimitado no perímetro do sofrimento, nunca da vida. Valerá a pena acalentar a esperança de compor a avaria em vez de destruir a máquina. Qualquer veneno mortal passa a ser um remédio eficaz, na medida em que nos retira as aflições e as angústias de qualquer ordem: amorosas, financeiras, profissionais, biológicas, pessoais. Só que também nos extingue, importa não esquecer.
  9. Sindicar que a vida humana se convola num direito disponível em sede de junta médica, de modo irreversível, não é um acto de liberdade que rime com a autonomia individual. Visto que não depende só da vontade própria. (Apenas o suicido se descreve nesses termos, encontrando-se descriminalizada a sua tentativa). E revoga um princípio fundamental de qualquer ordem jurídica moderna e civilizada, ou seja, o de que ninguém está autorizado a tirar a vida a outrém. Transformação abrupta que vigoraria perante os que são optimistas face à abertura do precedente e sobre os que são pessimistas quanto às consequências do buraco negro que cava. Atento o severo grau de incerteza e a evidente falibilidade de critérios legislativos, perigosamente gerais e abstratos, que regulariam o recurso a essa faculdade pelos decisores competentes; a acrescer à insegurança gerada pela desinvestidura da protecção pública do bem pessoal mais valioso, o melhor é mesmo não arriscar. Velemos antes pela regra sagrada: a vida humana só pode ser inviolável. 

Advogado e Presidente da Juventude Popular

 

 

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