Morte assistida: questões fundamentais

Dar a liberdade de escolha passa por reflectir o processo da morte, passa, até, por nos dessensibilizar face ao medo da mesma. Muitas vezes, cedendo a liberdade de escolha, é acrescida a possibilidade de um adiamento da decisão

Foto
Steve Halama/Unsplash

Já no passado trabalhei este tema, no P3, em artigo intitulado Morte assistida ou a apologia do direito a não nascer, e no meu livro O homem-Nada. Corpo, dialéctica e relativismo moral (Edições Mahatma, 2016). As questões prementes são, na verdade, bem simples e implicam uma pendência entre dois tipos específicos de ética/moral: deôntica vs. liberal.

Que o mesmo é contrapor a liberdade de um "todo", afecta a uma moral prenhe de "princípios", à liberdade do "eu" individual, mais consequencial (se bem que também "principesca") e utilitária. Milénios de exercício espiritual, religioso e filosófico ajudaram a entalhar uma série de "preconceitos" nas mentes, bem como o imperativo cognitivo da "vida". A ética serve, na realidade, o princípio da perseveração do corpo. Mas, enquanto a "deôntica" prima pela defesa de um tecido tendencialmente mais vasto, o modo mais "egóico" de moral vem, sobretudo a partir da modernidade, efectivar uma modalidade mais idiossincrática de perseveração (de certo modo, trata-se, aqui, de discernir "moral" propriamente dita de "liberdade"). Nos tempos que correm, não conseguimos sequer visar a possibilidade de não respeitarmos a vontade mais genuína, e, não obstante, esta vontade inclui o direito de um "outro", coisa que não acontece imediatamente no caso da "morte assistida", em que o direito do "ser" individual não conflitua directamente com direitos com igual ordem de importância de outros agentes (pelo menos a curto termo). Assim, em grande medida, a perpetração de um modo "deôntico", dominantemente judaico-cristão, de moral, a sua imposição, não parece fazer grande sentido, porque o acto "em si" não malogra o "outro" no imediato. Malogrará, quiçá, a crença do profissional de saúde, seu "bem-estar", mas isto é como tudo na vida: não há maneira alguma de evitar por completo magoar o "outro", a existência perfaz-se de sofrimento, de "violentação" q.b. do alheio, e nenhuma "deôntica" pode evitar integralmente que a alteridade, e o "eu", se aguilhoe.

Bem sabemos que a divisão conceptual apresentada é um tanto forçada, forjada no limite da compreensão. Porque "ego" e "princípios" se entrechocam constantemente, bem como formas distintas de compreender a realidade. No entanto, a filosofia tem ajudado a dogmatizar os "princípios" da "consciência" e da "liberdade". O que, não obstante, embate no modo "materialista" de empreender a realidade. Sabemos que, ao contrário do que propõe certo "espiritualismo", nós somos o nosso corpo. A consciência depende do "sofrer" do corpo e o "sofrer" depende da consciência. A liberdade, essa, é uma ilusão, mas, a existir, estará directamente dependente da consciência, a qual, no humano, é sempre consciência "de algo". Todos somos seres subconscientes, condicionados e sofredores. Fomos colocados no mundo para verter o martírio dessa consciência, bem como do pretenso "livre-arbítrio". A aprendizagem da vida visa ab-rogar o intrínseco processo de "martírio", da culpa adstrita à existência. A liberdade é o destino, e o sofrer encabeça a via destinada. O tempo do maior sofrer é também o da maior aprendizagem, se bem que um sofrimento "percepcionado" como imoderado embota o mecanismo e precipita a decisão de ultimar, descartar, esta coisa a que chamamos "vida". A vida é um "meio", não um "fim". O sofrimento é um "meio", não um "fim". O fim trata de "libertar" o "ser" da amarra, da mordaça da subconsciência. Dizem os "eticistas" que a vida é divina. Não, é a liberdade que é divina, a vida é somente uma viagem. Dizem os "eticistas" que a decisão de "morrer" tem de ser plenamente consciente e livre. Nem eles são conscientes ou livres quando fala o dogma por eles, nem é livre nenhum homem, e, no entanto, o sofrimento profundo aguça o instrumento de uma consciência penetrante. Nunca o homem é tão pleno como quando decide morrer, sobretudo se o "sofrer" fala por si. Nunca o homem é tão dono de si mesmo como quando se transtorna o "sentimento de si", como quando o corpo ameaça escapar-se para um plano onde o "ser" se totaliza, e, no entanto, dizem os "viciados de vida" que o "sofredor", o moribundo, não possui o discernimento necessário, a forçosa liberdade. Quando, precisamente, essa liberdade é mais necessária, quando ela aparenta sua proximação, vem a alteridade denegar o direito do "ser". Se o "ser" não sofresse, se ele possuísse as visadas condições de "livre decisão", aí já ele não precisaria de escolher morrer. É quando a escolha se torna "dura" e difícil que ela se torna, de facto, "escolha". É quando o mundo dói que o direito "individual" se transtorna urgente. E olhem que o pensamento sempre se fez de culpa e sofrimento, mesmo o "idealismo" de que bebem os dogmáticos, que, por sua vez, colocaram em "Deus" a responsabilidade da escolha "plena". Mas o "Deus" somos nós, no "todo" talvez, mas a "ideia" vem especialmente da "parte" (do "homem-Deus"), do que luta pelo direito de cessar o caminho, do que, como dizia Platão, trabalha para "morrer".

A liberdade não mata, antes ressuscita, o "princípio". É preciso, claro, que exista uma deôntica que ajude a caucionar o processo da "morte assistida" (evitando, inclusive, que esta seja utilizada enquanto modo e mote de "engenharia social"). A banalização da morte pode pôr em causa certos princípios, e, se estes falham, aumentam o sofrimento e a própria necessidade de "morte assistida". Dar a liberdade de escolha passa por reflectir o processo da morte, passa, até, por nos dessensibilizar face ao medo da mesma. Muitas vezes, cedendo a liberdade de escolha, é acrescida a possibilidade de um adiamento da decisão. Porque a própria "autonomização" ajuda na vivência e resolução do sofrimento. E um sofrimento cerzido traz novos "princípios", novas lições de vida.

Sugerir correcção
Comentar