Ciberespaço, eleições e propaganda intrusiva

Fenómenos como aqueles que temos assistido nos EUA favorecem, de forma preocupante, o alastramento do medo e da desconfiança. Urge assim reverter este processo, sabendo que em breve teremos eleições na Alemanha e na França

Os acontecimentos das últimas semanas – com a denuncia da influência russa nas eleições norte-americanas e os supostos vídeos comprometedores de Donald Trump – trouxeram para o topo das preocupações mediáticas duas questões: a crescente dependência cibernética das sociedades e aquela que poderá ser a real dimensão da nossa vulnerabilidade.

A evolução tecnológica favoreceu uma profunda desmaterialização do quotidiano, que passou a estar alojada num espaço dito virtual e em expansão, uma esfera do real onde fazemos transações financeiras, adquirimos bens e serviços, nos relacionamos e projetamos preferências, memórias, opiniões, de natureza pública e privada. O ciberespaço, hoje, não é só um espelho complexo da dimensão física do mundo real, deixou de ser uma simples simulação para formar uma dimensão verdadeira, com vida e regras próprias. O que é virtual representa hoje uma dimensão do real, numa fusão entre o material e o imaterial cada vez mais difícil de distinguir. Este fenómeno acarreta vantagens, mas também vulnerabilidades e riscos cujo alcance ainda estamos a procurar determinar.

A digitalização do quotidiano, em expansão, tem uma dimensão e impacto à escala do cidadão, mas também tem servido de suporte às atividades dos Estados. A consciência por parte dos cidadãos que os níveis de segurança da digitalização do quotidiano, à escala do cidadão, merecem particular atenção, dadas as suas vulnerabilidades, não é um fenómeno recente. Já não é novidade que há uma criminalidade comum que se dedica ao roubo de dados de cartões de crédito, à encriptação de servidores e computadores como forma de chantagem e extorsão, ao roubo de identidade ou à invasão da privacidade. Porém, nos últimos meses, o que nos foi revelado é que no topo da hierarquia do poder político mundial se joga uma guerra silenciosa pelo controlo da informação digitalizada, que explora as fragilidades das infraestruturas que a suportam, deixando no ar a ideia que as vulnerabilidades poderão estar a atingir os pilares da democracia e da soberania dos próprios Estados.

O relatório desclassificado este mês pelo gabinete do Director of National Intelligence norte-americana (Assessing Russian Activities and Intentions in Recent Elections), não permite concluir que tenham sido bem-sucedidos eventuais ciberataques ao sistema eleitoral. Porém, as polémicas em relação à fiabilidade das máquinas de voto, nos EUA, têm inúmeros antecedentes. Em Novembro de 2014, no Estado da Virgínia, detetou-se que máquinas de voto eletrónico usavam uma versão descontinuada do Windows XP, sem atualizações de segurança há uma década. Alguns hackers garantiram que seria trivial atacar remotamente os sistemas e inserir votos falsos ou alterar votos já efetuados. O Estado da Virgínia retirou a certificação destes sistemas, sem, contudo, ter sido clarificado se no passado teria ou não havido adulteração do voto enquanto os sistemas se encontravam vulneráveis e em funcionamento.

O relatório é, sim, exaustivo na análise do que terão sido acções de propaganda intrusiva, que apesar de terem sido veiculadas a partir do ciberespaço e patrocinadas aparentemente pela Rússia, não se pode considerar que façam parte de uma dimensão de cibersegurança ou se joguem num cenário de ciberguerra. As acções de propaganda, desinformação e espionagem fazem parte do jogo do poder desde longa data, e a sua veiculação via ciberespaço não é inédita. A propaganda, porém, no quadro das sociedades abertas não se combate com cibersegurança ou ciberataques, mas com mecanismos de transparência na informação, desenvolvimento de novas literacias e capacidade crítica por parte dos cidadãos para avaliar os candidatos no processo político. Ainda assim, quando a intelligence afirma que as ações praticadas a partir da Rússia terão alterado o rumo das eleições norte-americanas – e sabendo, como sabemos, que só uma pequena parte da informação existente foi desclassificada – somos forçados a concluir que a Guerra da Informação se desenrola num novo campo, mais subtil, que vai para além do mero ciberataque e da ciberguerra. Este tipo de conflito está a empurrar a opinião pública para um ambiente de suspeita e desconfiança que progressivamente estará a minar o sistema democrático, sem que se possam identificar com clareza as fontes, como ocorreria numa guerra convencional baseada em ataques diretos ou assumidos.

Vivemos num mundo onde a dimensão virtual tem cada vez mais relevância. As ligações e as interdependências em rede ganham espaço nas nossas vidas e no quotidiano das organizações. É assim fundamental perceber se estamos preparados para enfrentar os riscos próprios e as vulnerabilidades associadas à mudança. Desde logo, não só no contexto das interações ao nível do cidadão comum, mas também na dimensão das soberanias e dos Estados. Por isso, é legítimo questionar se os pilares fundamentais daquilo que para este efeito podemos convencionar ser a “Sociedade Política” (governos, tribunais, instituições públicas, infraestruturas críticas) estão preparados para garantir a sua integridade e fiabilidade. A estabilidade social depende da confiança nas instituições. Fenómenos como aqueles que temos assistido nos EUA – divulgados num quadro de uma certa opacidade, e acompanhados de níveis elevados de ruído mediático e ansiedade – favorecem, de forma preocupante, o alastramento do medo e da desconfiança. Urge assim reverter este processo, sabendo que em breve teremos eleições na Alemanha e na França.

 

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