O romance “feminista” de Humberto Delgado vai continuar inédito mais algum tempo

Adiado à espera da autorização de um filho do general, Elsa, escrito no exílio brasileiro, conta a história de uma jovem que se envolve com um (não muito ficcionado) militar que conspira contra o salazarismo.

Fotogaleria
Humberto Delgado em 1945
Fotogaleria
O dactiloscrito do romance ILÍDIO VASCO
Fotogaleria
O dactiloscrito do romance ILÍDIO VASCO

Elsa, um romance inédito de Humberto Delgado que a editora Guerra e Paz previa publicar este mês, vai afinal ficar mais algum tempo inédito, até a editora chegar a acordo com um dos herdeiros do “general sem medo”, que interpôs uma providência cautelar para tentar evitar a publicação deste livro, cujo subtítulo é “Romance de costumes políticos portugueses”.

O Tribunal da Propriedade Intelectual até já recusou a providência, segundo afirma um comunicado da editora, mas a Guerra e Paz prefere não lançar a obra contra a vontade de parte da família do autor e propõe-se fazer “todos os esforços para chegar a acordo com todas as partes envolvidas”.  

A providência, apresentada por iniciativa do comandante aviador Humberto Delgado, filho e homónimo do militar que desafiou Salazar, centrar-se-á em questões relacionadas com direitos, mas, segundo se depreende do comunicado da Guerra e Paz, levantaria também dúvidas sobre a própria autoria do romance. O tribunal, diz a editora, “considerou [a providência] improcedente na sua totalidade, confirmando que a obra é da autoria de Humberto Delgado”.

Nem o responsável da Guerra e Paz, Manuel S. Fonseca, nem o neto e biógrafo de Humberto Delgado, Frederico Delgado Rosa – que já referia a existência deste romance inédito no seu livro Humberto Delgado: Biografia do General Sem Medo (Esfera dos Livros, 2008) – quiseram adiantar pormenores sobre este processo, mas o segundo garantiu ao PÚBLICO que a obra é mesmo do avô: "Enquanto biógrafo de Humberto Delgado, a única coisa que posso afirmar é que não há ninguém no mundo que pudesse ter escrito a obra Elsa. Romance de costumes políticos sem ser ele."

O dactiloscrito do romance, composto de 185 páginas A4, será exemplar único, e foi descoberto há já uma década, quando uma investigadora brasileira o fez chegar às mãos da herdeira de Arajaryr Campos, a secretária brasileira de Humberto Delgado, que acompanhava o general quando este caiu na armadilha montada pela PIDE e foi igualmente assassinada pela polícia política de Salazar. Crê-se, aliás, que o documento tenha sido dactilografado por Arajaryr Campos, já que várias palavras aparecem grafadas na sua versão brasileira. Tendo passado depois pela entretanto extinta Fundação Humberto Delgado, então dirigida pela filha do general, Iva Delgado, o original está hoje depositado no Arquivo Histórico da Força Aérea.

Apesar da referência que Frederico Delgado Rosa lhe faz na sua biografia do avô, a notícia de que existia este romance inédito só chegou aos jornais em Setembro de 2016, quando a Guerra e Paz anunciou que chegara a acordo com os herdeiros de Humberto Delgado para a publicação do livro e assumiu a intenção de o lançar a 13 de Fevereiro de 2017, quando se cumprem 52 anos sobre a morte do general, assassinado pela PIDE em Los Almerines, perto de Olivença, onde se dirigira com Arajaryr Campos na convicção de que se ia encontrar com opositores ao regime do Estado Novo.

Uma criada chamada Elsa

Humberto Delgado demonstrou desde cedo gosto pela escrita e aptidões literárias, tendo publicado várias peças, como Vinte e Oito de Maio (1939), escrita para a rádio, Asas (1943) ou A Marcha para as Índias (1954), e ainda um volume que inclui também uma peça original, além de vária documentação relativa às célebres cartas atribuídas à freira portuguesa Mariana Alcoforado – O Infeliz Amor de Sóror Mariana: a Freira de Beja –, este já editado no Brasil, em 1964.

Mesmo assim, este romance, pelo pouco que se sabe dele, constitui uma considerável surpresa, desde logo pela ambição literária, mas também pela sua denúncia da discriminação das mulheres no salazarismo. O editor da Guerra e Paz, Manuel S. da Fonseca, já afirmara tratar-se de um livro “preocupado com a condição feminina”, e Frederico Delgado Rosa confirma. “Elsa é um romance sobre uma criada de servir, como se dizia na época, e sua mãe, que comem o pão que o Diabo amassou, numa sociedade injusta, o Portugal salazarista, eivado de preconceitos de classe e de discriminações machistas”, descreve o neto de Humberto Delgado, salientando que a obra “tem um cunho que se poderia chamar de feminista, ao fazer a denúncia desses comportamentos”.

Mas o livro, acrescenta Frederico Delgado Rosa, “faz uma conjugação dramática das vertentes romântica e política, pois Elsa envolve-se com um militar que conspira contra o regime e acaba ela própria por ser vítima da polícia política de Salazar”. Como este enredo sugere, este não é um desses romances em que todas as semelhanças com acontecimentos e pessoas reais são mera coincidência. Elsa existiu mesmo, e há correspondência no espólio de Humberto Delgado que atesta que o autor conheceu a protagonista do seu romance. No livro, Elsa, filha ilegítima de uma criada, é uma jovem de grande curiosidade intelectual e que gosta particularmente de cinema.

Quando anunciou que iria publicar o livro, em Setembro, a Guerra Paz já chamara a atenção para o seu “cariz marcadamente autobiográfico”, e agora, ao expor as razões para não avançar já com a sua publicação, afirma que “a publicação desta obra, de extraordinário valor e impacto social, cultural e político, deve ser feita sem a sombra de qualquer conflito”, permitindo que “todas as atenções se possam concentrar (…) nas qualidades literárias da obra e no vibrante testemunho que ela encerra”.

Humberto Delgado terá começado a trabalhar neste romance ainda em Portugal, nos primeiros meses de 1959, quando esteve refugiado na Embaixada do Brasil, imediatamente antes de seguir para o seu exílio no Rio de Janeiro, onde depois terminou o livro, cujo dactiloscrito, confirmando que se trata de um texto completo, ostenta na última página a palavra “Fim”.

Enquanto se aguarda a publicação de Elsa, agora adiada sine die, fique o leitor, a título de aperitivo, com o início do livro, que a Guerra e Paz transcrevia no seu primeiro comunicado: "Já para a cozinha! Estúpida! Apontando a porta, insulta a jovem que ri, despreocupadamente, sentada no sofá. Ao increpá-la, tremem-lhe as adiposas curvas de matrona. De olhos parados, Elsa hesita em aceitar o vexame sem reacção."

Sugerir correcção
Ler 3 comentários