Adriana Calcanhotto fez “um colar de pérolas em língua portuguesa”

De um recital nascido na Biblioteca Joanina de Coimbra, em 2015, Adriana Calcanhotto extraiu um concerto ainda mais ambicioso. Das Rosas estreia-se esta sexta-feira na Gulbenkian, às 21h.

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Adriana Calcanhotto LEO AVERSA
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Adriana e Nestrovsky na Biblioteca Joanina de Coimbra, em 2015 VERA MOUTINHO

A cantora e compositora Adriana Calcanhotto está de volta aos palcos portugueses com um espectáculo que em 2015 só foi visto por uma minoria e num cenário privilegiado, o da majestosa Biblioteca Joanina de Coimbra, onde ela cantou acompanhada pelo violão de Arthur Nestrovski e “vigiada” pelo olhar do Rei D. João V (1707-1750), no óleo de Domenico Duprà. Agora regressam ambos, o formato voz e violão mantém-se, mas o espectáculo cresceu, como explica Adriana ao PÚBLICO, numa entrevista por email. Das Rosas, o espectáculo, estará esta sexta-feira em Lisboa, no Grande Auditório da Gulbenkian (21h), seguindo depois para Coimbra (dia 4, Teatro Académico Gil Vicente, 21h30) e Porto (dia 5, Casa da Música, 21h30).

O que vimos em Coimbra, no Tudo Língua, em Dezembro de 2015, é basicamente o que veremos agora? Ou o concerto teve alterações? Quais?
Incluímos mais canções, sentimos falta de mais. É difícil criar um concerto para uma apresentação única, não há testes. Olhos de Onda, por exemplo, foi criado assim, para uma noite só; fiquei praticamente três anos com ele na estrada e não posso dizer que o alinhamento tenha ficado perfeito em algum momento. No Das Rosas estamos encadeando a história da canção, da poesia transmitida pela música, de como era na Grécia, com os trovadores, depois com Dom Dinis, Camões, Pessoa, Amália, Vinicius de Moraes, Chico Buarque e por aí vai.

O caminho, originalmente traçado, entre idiomas e culturas (Portugal-Brasil) levou-a a explorar melhor essa via nos shows que agora traz a Portugal? De que modo?
Dessa vez tínhamos já um esqueleto armado, que era o alinhamento de 2015. Para 2015 estávamos mais preocupados em aprender e ensaiar as canções, agora pudemos aprofundar o caminho original e abrir o leque de links de um autor para o outro, de diferentes épocas, de como a influência de um vai desaguar no outro. De qualquer forma esse é o assunto no qual eu venho trabalhando na preparação das aulas que vou dar em Coimbra, estou mergulhada nisso.

Além dos poetas cantados e musicados no show original haverá agora outros autores. O que a levou a escolhê-los?
As escolhas têm a ver com a verticalidade das canções, da agudeza, da ‘direteza’ da canção. Morro Dois Irmãos, do Chico Buarque, um poema mineral, lindíssimo, que gravei na Fábrica do Poema. Gregório de Matos, com Mortal loucura, um poeta português que foi para a Bahia e que estava a frente de seu tempo; Caetano Veloso com Cajuína; Amália como compositora, de Tive um coração, perdi-o; Bob Dylan, em versão para o português de Caetano e Péricles Cavalcanti, Negro amor (It’s all over now baby blue). Aqui no Das Rosas o Nobel de Literatura, com sua premiação, joga uma pá de cal na discussão infrutífera sobre a hierarquia entre poesia e letra de canção. Bob Dylan faz o que fazia Arnaut Daniel na Provence, Martin Codax na Galiza, Dom Dinis em Portugal. O mesmo que Vinicius de Moraes no Brasil. A propósito, no alinhamento incluímos Medo de amar de Vinicius de Moraes para mostrar como ele é, além de genial letrista, um grande compositor de música.

Como descreveria este show a alguém que nunca tenha ouvido falar dele?
Um colar de pérolas em língua portuguesa.

Este trabalho com Arthur Nestrovski poderá dar origem a um CD ou a um DVD?
Ainda não falámos sobre isso. Acho que por essa característica de estar eternamente in progress não sei se chegaríamos a um acordo de modo pacífico embora isso não seja receita para bons registos. A verdade é que não ando com vontade de fazer registos, estou mais propensa a compor, escrever e estudar.

Até que ponto foi gratificante para si essa experiência em Coimbra? E que horizontes abriu, se os abriu, na sua carreira?
Me identifico muito com os ideais de excelência e de amor à transmissão do conhecimento que tanto valoriza a Universidade de Coimbra (UC). O momento no Brasil é de instituições a fechar, o ensino degradado, as universidades sucateadas, os professores humilhados, a apanhar dos alunos em sala de aula. A mim me dá esperança estar perto de gente que acredita que sem educação não é possível fazer-se um país ou ser um país. Gosto de pensar a relação da UC com o Brasil e vice-versa, acho interessante o pensamento do professor José Murilo de Carvalho sobre o Brasil pensar-se como Brasil pelos estudantes brasileiros de Coimbra desde sempre. Na carreira abriu-me essa frente nova, a vida académica, que abandonei muito jovem, por impaciência, para fazer música. Considero um enorme privilégio um convite para viver a experiência de morar seis meses em um país letrado, com a língua mais linda de todas.

Vai estar agora algum tempo em Coimbra. O que fará durante essa estadia?
A Universidade já me ofereceu a capa negra, de modo que serei mais uma delas, absolutamente deslumbrada com tudo, socada nas bibliotecas, dia e noite. Nos intervalos darei aulas sobre coisas que não se ensina.

Tem em preparação um novo disco de originais, agora que um novo tema seu (Não demora) chega às plataformas digitais e integra a novela A Lei do Amor?
Não tenho em preparação um novo álbum ainda que tenha canções para isso. Passei por uma fase produtiva, tenho dez músicas novas mas gosto também de poder lançar uma música só, de vez em quando, como era na época de ouro da rádio no Brasil, quando lançavam-se músicas avulsas, para o Carnaval.

Como é vista no Brasil esta sua ausência?
Às pessoas que têm perguntado o que estou achando de morar no exterior tenho corrigido dizendo que Portugal não é exterior, Portugal é o Interior...

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