Adeus à razão

A Europa, esse berço antigo da filosofia e da ciência, parece não ter hoje forças para reagir, porque a razão também aqui está esvaída.

Adeus à Razão é o título de um livro do filósofo austríaco Paul Feyerabend, autor de uma muito singular filosofia da ciência, que consiste na rejeição da ciência. A ciência serve-se de uma metodologia universal para avançar no conhecimento do mundo, mas Feyerabend coloca-se numa posição anarquista que consiste pura e simplesmente na negação do valor desse método. Para esse filósofo, a visão fornecida pela ciência devia valer tanto ou tão pouco como qualquer outra visão do mundo, ser apenas mais uma entre as várias ideologias. A sociedade devia precaver-se da ciência tal como devia precaver-se de qualquer ideologia.

As posições anti científicas de Donald Trump fazem-me lembrar Feyerabend. Não que acredite que Trump, um analfabeto funcional, algum dia tenha lido esse ou qualquer outro filósofo, mas a rejeição da ciência tão bem patente nas afirmações que proferiu durante a campanha, seja a respeito do aquecimento global (“uma criação dos chineses”), ou das vacinas (“que causam autismo”) ou ainda das lâmpadas economizadoras de energia (“que causam cancro”), tem muito de feyerabendiano.

Nunca alimentei ilusões sobre o novo presidente americano. Ele não passa de um demagogo que venceu as eleições apelando aos instintos mais básicos da população. Para ele não há factos nem verdade, mas sim os factos dele e a verdade dele, o que alguns chamam “factos alternativos” e “pós-verdade”. O seu discurso de tomada de posse e as ordens executivas que tem vindo a assinar estão alinhadas com a sua retórica eleitoral. Estavam, portanto, enganados aqueles que, colocando paninhos quentes, pensavam que ele se ia transformar numa pessoa razoável, logo após a investidura. E aqueles que pensam que os checks and balances da velha democracia americana vão impedir os estragos causados pela Casa Branca: existem, com efeito, esses mecanismos de controlo, mas não vão chegar para impedir a estragação.

Ao denunciar o Tratado de Paris, Trump está, negando a ciência, a declarar que lhe é indiferente o destino do planeta a médio e longo prazo. Qualquer dia poderá impedir a vacinação, fazendo regredir muitas décadas a saúde pública. E, quiçá, voltar às lâmpadas antigas. A Casa Branca está hoje escura. Algumas agências federais, que lidam com questões ambientais, ou, mais em geral, de ciência e tecnologia, estão já a ser amordaçadas ao verem-se impedidas de publicar documentos sobre o clima sem  autorização superior. A agenda anti-ambiental de Trump é muito fácil de perceber e nem sequer radica numa ideologia: ele e os seus amigos, entre os quais o proposto secretário de Estado Rex Tillerson (ex-CEO da ExxonMobil), beneficiam de negócios multimilionários baseados no petróleo. “Factos alternativos” e “pós-verdade” significam neste caso defesa de interesses económicos de pessoas e grupos, que disfarçam o seu sectarismo com o manto diáfano do patriotismo.

Não se pode fazer nada? Claro que pode. O astrofísico Neil deGrasse Tyson sumariou o que é preciso fazer quando propôs: Let us Make America Smart Again. Para lá dos cidadãos mais instruídos, há inúmeros americanos honestos que vão resistir, usando a razão que tanto Feyerabend como Trump despediram. Na democracia americana vai haver - está já haver - um combate, assente na racionalidade, por coisas que julgávamos adquiridas como o reconhecimento dos factos e da verdade. E não se diga que o voto popular dá o direito a dizer e a fazer o que se quer. Um dirigente que minta não deixa de ser um mentiroso lá por ter sido eleito. E um dirigente que viole a lei está obviamente sujeito à justiça.

Na actual geopolítica mundial, a voz da América é determinante e a ascensão em Washington da irracionalidade pode ter efeitos globais catastróficos. A Europa, esse berço antigo da filosofia e da ciência, parece não ter hoje forças para reagir, porque a razão também aqui está esvaída. Mesmo em Portugal, quer nas forças que apoiam o governo quer nas que estão na oposição, assistimos a posições anti-científicas aparentadas com as de Trump: veja-se, por exemplo, a defesa das medicinas alternativas pelo Bloco de Esquerda e pelos partidos da direita. Ideologia? Não,  simplesmente interesses económicos.

*Professor universitário (tcarlos@uc.pt)

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