Lucifer, ou balada para dois discos e um renascimento

Começou em Londres, cenário irrecusável, e acabou com uma banda à deriva. Lucifer é o melhor álbum dos The Poppers, é rock'n'roll como mistério e catarse nocturna. Um álbum de sobrevivência. Da turbulência fez-se luz.

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Para alguém que alinha os seus passos segundo a história e as mitologias do rock’n’roll, aquele cenário era irrecusável. Os Rak Studios, fundados por Mickie Most, produtor que fez o seu nome ao lado dos Animals, de Donovan ou Herman’s Hermits, e que, numa antiga escola em St. John’s Woods, Londres, reconvertida em estúdio de gravação, acolheu a partir de 1976 nomes como David Bowie, Al Green, Pink Floyd ou Michael Jackson. Para os The Poppers, a banda de quatro amigos de adolescência, vizinhos na rua Otelo Saraiva de Carvalho, nos Olivais, às portas de Lisboa, era difícil imaginar cidade e estúdio melhor para registar o terceiro álbum. E, por isso, partiram. Estávamos em Outubro de 2013. Correu tudo na perfeição. Acabou tudo mal.

Começa ali a conturbada história de Lucifer, o novo álbum da banda que se apresentou em 2006 com Boys Keep Swinging, feito de citações mod e de pop britânica clássica, e que investiu mais declaradamente no rock’n’roll, a meio caminho entre o glam e o fuzz Nuggets, em Up With Lust (2010). Lucifer nasceria depois de Londres, depois de uma pausa de um par de anos, depois de as tensões, na ressaca londrina, terem desfeito o quarteto da adolescência nos Olivais (saiu Pardal, o baixista), e depois de Rai se ter juntado a Afonso Rodrigues (Sean Riley & The Slowriders), Bráulio (Capitão Fantasma) e Carlos BB (Riding Pânico) nos óptimos Keep Razors Sharp.

Produzido por Paulo Furtado, deixa-nos a fazer o elogio da turbulência na existência de uma banda. Porque este é o álbum de uns novos The Poppers, abertos à história do rock’n’roll e seus afluentes, mergulhando de cabeça na noite de mistérios e perdição em que uma guitarra se ergue na noite para bem-vinda catarse. O título não engana e a capa do álbum, máscara de gás na cabeça e cocktail molotov na mão, também não. Será apresentado este sábado no Musicbox, em Lisboa, às 23h (bilhetes a 8 euros). Dia 3 de Fevereiro os The Poppers estarão no Centro de Artes e Espectáculos de Portalegre e, a 4 de Fevereiro, na Sociedade Harmonia Eborense, em Évora.

Certa noite Rai, vocalista, guitarrista e compositor dos The Poppers, via o vídeo de um concerto dos Grinderman de Nick Cave. A banda tocava nos Rak Studios e Rai tinha lido sobre a história do edifício, sabia quem por lá passara. Enviou um mail a um dos seus produtores, Richard Woodcraft, e recebeu resposta na manhã seguinte. Woodcraft pedia-lhe algumas demos de canções. Demos enviadas, o produtor não escondeu o seu entusiasmo. Queria trabalhar com a banda e nem estava preocupado com o parco orçamento que os The Poppers tinham disponível. Na varanda do cinema São Jorge, em Lisboa, Rai recorda o que lhe disse Richard Woodcraft: “Quero fazer isto com vocês. O nosso preço normal é este [afasta os dedos indicadores 20 centímetros um do outro], mas sei quais são os vossos recursos e fazemos por este [aproxima os dedos 15 centímetros ]”. Em Outubro de 2013, depois de uma campanha de crowfunding para completar o orçamento necessário, Rai, Bonés (guitarrista), Bruno (baterista) e Pardal (baixista) partiam para Londres. “Era a oportunidade de nos desafiarmos, de absorvermos o ambiente de uma cidade de onde saiu tanta música que nos influenciou. Quem recusaria uma possibilidade destas?”.

Como é hábito neles, o trabalho foi feito rapidamente, forma de capturar a urgência do momento - Up With Lust, o álbum anterior, fora gravado em dois dias e meio. Em Londres, entre horários de gravação e boémia nocturna moderada, que “aquele pessoal às sete da tarde já está a malhar pints no pub”, precisaram de cinco dias. “Andámos sempre com o Richard e as coisas estavam a correr muito bem e a soar muito bem”. Os problemas chegaram depois quando, já em Portugal, começam a receber as misturas das canções. “Não me identifiquei nada com o som. Tudo muito plano, sem dinâmica, muito polido. Chegou a um ponto em que estávamos todos a desgastar-nos demasiado, porque parecia que soava pior a cada nova tentativa de mistura. Eu acreditava naquelas canções e a minha única expectativa é que o som gravado fosse o som que imaginava na minha cabeça. Isso não aconteceu. Tudo à volta foi perfeito. Isso foi a única que falhou”. Mas isso, claro, era o mais importante. E Rai não estava preparado para fazer um Alice Cooper e editar um disco com que não se identificava para, daqui a 15 anos, quando confrontado com ele, afirmar convictamente que não se lembrava de o ter gravado – que é o que diz o mestre da provocação rock sobre alguns discos que editou algures nos anos 1980.

Apesar de ter equipa de management a incentivá-lo, a dizer-lhe que o disco não estava tão trágico como julgava, que estava até bastante razoável, e apesar do contratempo que seria deitar para o lixo o tempo e dinheiro investidos, Rai foi inflexível. Ceder nessa convicção seria uma traição imperdoável. “Mais que tudo o resto, o que queremos é isto, fazer música, fazer rock, independentemente de tocarmos para duas pessoas, 10 pessoas ou para uma sala cheia. O que nunca mudou em nós desde o início foi a devoção às canções. Todos temos o nosso trabalho, todos nós lidamos com os nossos fantasmas diários e a banda é o espaço de terapia. Isto é um grande cliché, mas é verdade”, diz. Aceitar aquele álbum na discografia da banda seria uma traição à ideia de pureza rock’n’roll que os guia. Recusá-lo era, portanto, a única possibilidade. Recusá-lo deixou-os “na merda”: “Não tínhamos dinheiro e não tínhamos disco. Ficámos à toa”. E entretanto, desagradado com a situação, o baixista co-fundador abandonou os The Poppers.

Esta era a banda que se formara porque quatro tipos que “cresceram juntos ouvir D.R.I. e Public Enemy, que passaram depois pelo metal”, se descobrem mais tarde “num gosto comum: os Creedence Clearwater Revival, os Kinks, os The Who”. Eram a banda que saía da sala de ensaios, ou de uma saída à noite, ia buscar as guitarras a casa, reunia amigos à sua volta e ficava a tocar no bairro, no Jardim da Igreja, as canções que inventara nessa mesma noite ou na anterior. Quebrar esse laço de partilha e intimidade, a ideia de “esta banda é a nossa vida”, parafraseando título célebre da bibliografia rock, isto depois da experiência difícil do álbum londrino (que Rai assegura que será oferecido aos contribuintes da campanha de crowdfunding), terá sido tudo menos fácil. Porém, não fosse essa sequência de acontecimentos e não estaríamos aqui.

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Lucifer ergue-se

Like dust é a primeira canção. Rock’n’roll em passada lenta sobre poeira do deserto, engrandecida no refrão pela força dos coros femininos. Primeiros versos: “Dont’ know why I feel like I do / Ghosts in my head, stones in my shoe / sticks and stones, don’t grab my bones / like dust we will rise, like dust we will rise again”. É o anúncio do renascimento. Nunca ouvíramos os The Poppers assim. Tão convictos, tão em controlo das dinâmicas das canções e tão confortáveis no imaginário evocado. É álbum noite, como referimos, álbum de boémia regeneradora, quando as seis da manhã são (ou parecem) a melhor para nos sentirmos vivos. Um álbum habitado por junkies, almas penadas e românticos crentes que o rock’n’roll tudo salva. Um álbum onde o baixo pulsante dos Black Rebel Motorcycle Club se ilumina com o fuzz da guitarra e balança ao voodoo das maracas e timbalões (In the morning). Onde baladas assombradas ganham o poder comunal do gospel quando surgem os coros em tom grave e as teclas iluminadas do convidado Filipe Costa, dos Sean Riley & The Slowriders.

Nunca os tínhamos ouvido assim: com a urgência do momento, consequência da gravação em take directo, a contribuir e não a afogar o espaço ocupado por cada instrumento. Ouça-se a óptima Do you remember, com guitarra em electrocussão e o groove rhythm’n’blues dos saudosos The Delta 72, ouça-se a guitarra slide a dar espírito blues ao festim dançante de Hey lay your hands on me ou como o psicadelismo sinistro dos Clinic é base para o western’n’roll de Married to our dangers. Pelo meio, ainda há uma Teenage kicks, clássico de 1978 dos Undertones, que troca a euforia fundada em desespero do original por uma melancolia nostálgica para duas guitarras e voz – mais uma surpresa: tinham tudo gravado e umas horas de sessão por gastar, Furtado sugeriu uma versão, aquela especificamente, e, dois takes depois, garrafa de cerveja numa mão, papel com a letra na outra, os The Poppers tinham mais uma canção no alinhamento do álbum.

Como chegaram aqui? Chegaram porque entretanto apareceram os Keep Razors Sharp e Rai, mergulhado naquela torrente de electricidade de mil tonalidades, descobriu novas formas de explorar a guitarra e de conduzir a banda por outros territórios sonoros. Chegaram porque os The Poppers decidiram convidar Paulo Furtado a produzir o disco. Este aceitou prontamente e, certo dia, no final de um ensaio, disse a Rai em cinco minutos o que a banda precisava de ouvir. O vocalista recorda: “Tentem uma outra abordagem aos instrumentos, em vez de pôr tudo à frente e de atabalhoar o conjunto. Façam com que os instrumentos soem realmente, deixem entrar algum ar entre eles. Façam com que a banda comunique em vez de andar a lutar entre si”. Palavras providenciais. “O Paulo ajudou-nos muito e essa conversa foi providencial”. Depois dela, conta Rai, tudo mudou. “Grande parte das canções nasceram depois dessa conversa, nas últimas duas semanas [de composição]”.  

O álbum foi nascendo. Paulo Furtado acabou como baixista de serviço nas sessões, Ian Ottoway, colaborador dos Black Rebel Motorcycle Club, amigo de Rai, acedeu a escrever uma história que leu, qual poeta da decadência, sobre o instrumental Modern wasteland. Entretanto, o título acabaria por se impor à banda por inevitabilidade. Primeiro, um amigo ofereceu a Rai um livro de Lord Byron em que abundavam as referências a Lucifer. Depois, começou a ter um sonho recorrente, que se fosse filme seria digno de ter Bruce Campbell como protagonista, em que Rai e Lucifer ele mesmo, que no sonho era um tipo de 1m70 com pequenos cornichos saindo, envergonhados, entre madeixas de cabelo louro, andavam por Lisboa a combater Godzilla e o Cristo Rei, ele mesmo, que se libertara da sua rigidez de pedra em Almada. Por fim, Rai viu o novo baixista dos The Poppers, Bruno Cantanhede (guitarrista dos Born A Lion, fotógrafo sob o pseudónimo Kid Richards), chegar a uma sessão de fotos de promoção com um blusão em cujas costas estava escrito aquele nome. Esse: Lucifer. Havia álbum, havia título, há banda. A vida dos The Poppers é antiga. A vida, esta nova vida, começa agora. 

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