Crítica do auto-retrato

Um estudo desassombrado sobre as ilusões da auto-representação fotografáfica na arte contemporânea.

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Um ensaio crítico e céptico em torno do seu objecto: o auto-retrato fotográfico na arte contemporânea DR

Fruto de uma investigação universitária, O Auto-Retrato — Fotografia e Subjectivação, de Eduarda Neves, professora e investigadora na Escola Superior Artística do Porto, constitui-se como um ensaio crítico e, assumidamente, céptico em torno do seu objecto: o auto-retrato fotográfico na arte contemporânea. Declina-se nas suas páginas um questionamento contínuo e argumentado das práticas, dos interesses, das ideias ou expectativas que estiveram associados a este “género” e que hoje, embora com os outros contornos, vão persistindo. Não se busque aqui uma sistematização ou uma revisão historiográfica. O trabalho de Eduarda Neves fez-se com uma dispersão de conceitos vindos da filosofia, da teoria da arte e da sociologia contemporânea. Os fundamentos da sua crítica encontram-se nessa metodologia de natureza pluridisciplinar.

Descreva-se, resumidamente, a tese que a atravessa. Embora conduzido por impasses ou promessas, o auto-retrato produzido com recurso à técnica fotográfica serviu, com maior ou menor eficácia, os desejos de controlo e vigilância da sociedade e, a compasso destes, os objectivos do capitalismo. Se numa primeira fase, inventou e reificou identidades, numa segunda fase transformou-as em mercadorias, que circulam e são consumidas. Foi um instrumento de dominação pela técnica e, depois de massificado, uma prática social que os membros da sociedade (incluindo os artistas) transformaram em mercadorias.

Duas realidades são apontadas por Eduarda Neves como estando na origem desta “corrupção” do auto-retrato fotográfico: a vontade de saber que impele o projecto positivista, elegendo a visão, não para testemunhar a beleza das aparências, mas para exacerbar o realismo óptico, destapando, tornando visível o que não é possível ver a olho nu. E a pulsão arquivística que prolonga e reformula o dispositivo panóptico. Com o arquivo moderno, a vigilância e a vontade de conhecimento transcendem as distâncias físicas, antecipando já as potencialidades das novas tecnologias.

A fotografia assume uma influência decisiva. Ao serviço do auto-retrato, sugere a ideia de que, através do estudo da expressão fisionómica, é possível arrancar o saber íntimo e privado que cada um esconde dos outros e de si. Uma nova tecnologia vinha desvelar definitivamente as identidades: expostas, estas transformavam-se em factos. Eduarda Neves ressalva que a auto-representação fotográfica, mais do que a pictórica, vem corresponder à estrutura da experiência da subjetividade moderna, do exame da consciência e da confissão. O seu carácter indiciário intensifica essa correspondência, atribuindo uma essência aos corpos, rostos e fisionomias. Estabelecia-se uma relação entre conhecimento e verdade, poder e controlo.

Deste quadro, a autora não exclui a fotografia que continuou a procurar representar o mundo (e porventura a assegurar a sua permanência), fiel a uma dimensão mimética. Ora o leitor poderá perguntar-se se a fotografia da primeira metade do século (e não só), embora com outras preocupações (menos críticas que as das vanguardas), não se furtou ao projecto de fixar e fazer circular identidades. Não serão as fotografias de Jacob Riis, Lewis Hine ou Walker Evans menos “lugares” de verdade do que de memória, ainda que fugaz? Objectos que movem o pensamento tanto quanto as imagens fotográficas dos surrealistas? Podemos descartar, sem mais, o humanismo que os seus autores reivindicaram para as suas imagens?

Eduarda Neves não considera a tradição fotográfica no âmbito da sua pesquisa e não concebe o programa modernista da fotografia como um programa artístico consagrado à fotografia. As questões que importam aos fotógrafos e aos artistas, nesse período, não foram, de forma dominante, as mesmas. Tal programa afirmar-se-á, propõe, na segunda metade do século XX, permitindo aos artistas interrogar o que é e não é arte, esbatendo as fronteiras entre a arte e o documento, entre as próprias práticas artísticas. Através de um conjunto de actividades como a performance ou a arte conceptual (entre outras), a arte pensava-se como fotografia e a fotografia como arte.

A auto-representação foi-se tornando, entretanto, o domínio onde cada um estava livre de fazer a exegese de si próprio. Mais do que libertar, desinibia e sob um regime que continuava a ser confessional. Os auto-retratos multiplicam-se a par das identidades e metamorfoseiam-se em mercadorias, destituídas de qualquer valor intrínseco (a sociedade que vigia é uma sociedade de consumidores). O género, o sexo, a identidade, o corpo, a intimidade, o privado ou a auto-biografia alimentam uma nova indústria, a da subjectividade, que rasura todas as singularidades. E a arte, e em particular, o auto-retrato fotográfico voltam a ser aliados deste processo, normalizando identidades ou promovendo uma desinibição de todas as interioridades.

O sujeito encontra-se, portanto, encerrado em espelhos, reproduções, cópias, que serão consumidas e esquecidas. Mas a análise de Eduarda Neves não é paralisante. Considera que qualquer tentativa de determinação é uma paródia, que o auto-retrato nunca teve uma coerência unitária e inalterável, mas vislumbra um ponto de fuga no simulacro sem modelo do outro, na identidade não como similitude, mas enquanto disparidade. “A diferença pura pode ser dada como objecto do pensamento e não da representação”, escreve. O papel dos artistas e da arte continua indefinível, ambíguo ou apenas suficientemente aberto para que, em vez de fundamentos, sejam os planaltos e as ligações a sobressair. Ou, com todas suas brechas ou ruínas, talvez o auto-retrato, enquanto impressão, marca de singularidades, ainda permita que os outros imaginem quem nós somos ou fomos.

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