Mortes que não se contam

Há milhares de mortos anónimos, em plena Europa de 2017. E há quem se dedique a humanizar a tragédia do Mediterrâneo, dando nomes, fazendo cerimónias e escrevendo certidões. Se não se tornam numa estatística, os mortos na fronteira nunca serão um assunto político.

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"Nós lidamos muitas vezes com a morte aqui", explica, pausadamente, o sub-chefe Pacheco Antunes, em Lisboa. A farda preta, moderna, da Polícia Marítima, mostra-o em plena forma, 46 anos, homem do mar. Ao lado, o agente Huerta confirma. "Todos nós temos contacto com essa questão da morte. Na passada sexta-feira estive de serviço e aconteceu, aqui. Vou recuperar um corpo, é alguém que perdeu a vida, é terrível, mas alguém tem de fazer aquele trabalho..."

"Lá foi diferente." Ambos concordam.

"No final de Outubro, estávamos de folga, e fomos chamados para ajudar num salvamento a uma milha do porto. O mar estava bastante mau nesse dia. Uma embarcação de madeira virou. Cem pessoas desapareceram. Foi um dia caótico. Foi um misto de emoções impressionante. Crianças a serem assistidas pelos médicos das ONG. Infelizmente algumas morreram. Os familiares, pais e mães a chorarem..."

Paulo Huerta tem a expressão carregada. "Podemos ter toda a preparação do mundo, mas contactar com isto..."

"Quando cá cheguei a minha esposa foi-me buscar ao aeroporto e fomos jantar a um centro comercial. Estávamos a jantar e eu nem reparei que ao lado estava um carrinho de bebé. Assim que o bebé soltou um choro...", recorda Pacheco Antunes.

O choro levou-o de volta ao mar Egeu. À estreita fronteira marítima entre a Grécia e a Turquia. Sete quilómetros de águas azuis, enganadoramente idílicas. Em Dikili, ou em Ayvalik, no lado turco, concentram-se os que querem atravessar o estreito. E Mitilene, a capital da ilha de Lesbos, está à vista, mais europeia do que nunca.

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Nesta operação de salvamento no Mediterrâneo, a ONG espanhola Proactiva Open Arms conseguiu resgatar as 112 pessoas a bordo Yannis Behrakis / Reuters

O registo de Aphrodite 

No registo municipal de Lesbos o estreito tem outra imagem. O corredor é escuro, vazio, despojado. Apenas uma nota escrita à mão, afixada na parede: "Registos de casamento, morte, nascimento. Baptismo, divórcio e mudança de nomes ao fundo do corredor."

No gabinete acanhado que Aphrodite Andrikou partilha com duas colegas há um barulho que desperta as pessoas que aqui entram cheias de esperança, alegria ou tristeza – os sentimentos fortes que acabam em letra de forma no registo burocrático da terra. Um fio de telefone fixo está pendurado entre duas secretárias à entrada, e quem quer entrar no gabinete tem de se esgueirar pelas arestas. Mesmo os cidadãos mais elegantes acabam por arrastar o fio, e o telefone cai ao chão com estrondo. Sem uma palavra, Aphrodite e as colegas apanham o telefone e voltam a pousá-lo na secretária.

Essa é a rotina. Mas a vida de Aphrodite Andrikou mudou, no último ano. Num ano normal morrem 400 pessoas em Mitilene, a capital de Lesbos onde vive a maioria dos 86 mil habitantes da ilha. Mas este não foi um ano normal... No exterior do hospital há uma câmara frigorífica para cadáveres constantemente cheia, e muitas vezes havia corpos no interior do edifício também.

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Aphrodite Andrikou trabalha no registo de Lesbos:"Temos de cuidar dos mortos. É o nosso trabalho" Nikos Pilos

Aphrodite e as suas colegas tinham tantos registos de morte para preencher que trabalhavam noite dentro e ao fim de semana. Deixou de almoçar com a família aos domingos. "Não me estou a queixar. Temos de cuidar dos mortos. É o nosso trabalho. Os médicos legistas também se fartaram de fazer horas extraordinárias."

Entre 2015 e o início de 2016, Lesbos foi o destino principal das rotas de tráfico de refugiados para a Europa. 856.723 pessoas atravessaram os sete quilómetros do Mar Egeu nesse período. Dez vezes mais do que a população da ilha. Entre Ayvalik e Mitilene há um ferry que atravessa o estreito em hora e meia e custa 15 euros. Mas para quase um milhão de pessoas a viagem custou pelo menos 1200 euros e foi feita a meio da noite, num barco de borracha.

Num só dia, os elementos da Polícia Marítima portuguesa que integravam a missão Poseidon da agência europeia Frontex, olharam para o porto e viram a dimensão do problema: "Num domingo contámos quase uma centena de botes a chegar, com 50 pessoas cada um..."

Os tripulantes das lanchas portuguesas Tejo e Arade tinham partido para a Grécia com treino, experiência e preparação, que incluiu palestras de psicólogos. Mas nada os preparou para o que viram. E a morte não se torna banal, mesmo quando passa a fazer parte do quotidiano: "Não é diferente à segunda vez. É exactamente igual", explica Paulo Huerta.

As equipas de salvamento dizem todas que a morte choca, perturba, marca. Mas nenhuma instituição europeia sabe ao certo quanta gente morreu no Mediterrâneo.

‘Não’, responde a Frontex

Ao mesmo tempo erguem-se vedações de arame farpado na fronteira turca com a União Europeia, há drones israelitas a sobrevoar a fronteira finlandesa com a Rússia e portugueses prestes a mapear o tráfego marítimo suspeito entre a Líbia e a Itália, e entre a Turquia e a Grécia. Uma rede dedicada de satélites transmite informações rigorosas ao minuto sobre o que se passa nas fronteiras para a sede da Frontex, em Varsóvia, que a distribui a todos os Estados-membros através da rede EUROSUR.

Não seria uma tarefa fácil, a de contar os mortos, mesmo que Bruxelas a quisesse tomar a cargo. As redes de tráfico não enviam listas de passageiros nos botes de borracha (nem coletes salva-vidas, apenas uma imitação barata que ensopa e ajuda a afundar os náufragos). Muitas vezes, os passageiros são estranhos uns para os outros. Conhecem-se na praia do embarque, à noite.

Mas a tecnologia ao serviço da Frontex e do EUROSUR podiam ajudar a, pelo menos, contar o número de pessoas que embarcam, e cruzar esses dados com o número daqueles que chegam a desembarcar. Já em 2013, um projecto piloto usado pela Frontex permitia recolher informação sobre o êxodo de populações de sítios tão distantes como Mali ou a Síria.

"Não", responde Ewa Moncure, porta-voz da Frontex. "Não estamos equipados para o fazer na actualidade."

A agência apenas contabiliza os mortos que são recolhidos no mar pelas patrulhas das suas operações Poseidon e Triton. Entre 1 de Janeiro e 9 de Novembro do ano passado foram, exactamente 399, assegura Moncure. Mas esse é um número insuficiente, que não conta com os corpos que dão à costa, por exemplo.

Nem o sistema CPIP (common pre-frontier intelligence picture) permite à Frontex saber quantos são os que tentam chegar à Europa vindos do Médio Oriente ou do Norte de África.

Nem nas completas e visualmente trabalhadas "análises de risco" que a agência publica consta qualquer referência aos 399 corpos retirados da água pelas patrulhas da Frontex. Apesar de haver uma sistemática utilização de estatísticas no documento: passagens ilegais de fronteiras terrestres, documentos falsos...

"Talvez venhamos a usar o número das pessoas encontradas mortas em futuras análises de risco", antecipa Moncure.

É como se a Europa tivesse vergonha deste número. Sabemos, ao pormenor, quantos refugiados foram salvos de naufrágios. Até aqueles que foram salvos pela Polícia Marítima portuguesa: 3674, incluindo 894 crianças. Os que desapareceram, desaparecem. Até dos rituais da própria própria morte registada, burocrática.

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Cemitério de Castellammare del Golfo, na Sicília, com as suas campas anónimas Ingeborg Eliassen

O cemitério de Efi

Em Lesbos, há quem não se resigne. Efi Latsoudi chegou à ilha em 2003, vinda de Atenas e de uma carreira como assistente social, sobretudo trabalhando com jovens em casas de correcção. Em Lesbos procura fazer a diferença. Criou um campo de refugiados auto-gerido, chamado Pikpa. E dedica-se também a dar um sentido às histórias que acabaram mal.

Efi foi escolhida pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados para receber o prémio Nansen daquela instituição, em 2016. Ela não percebe a indiferença da Europa perante a morte. "Fecham as fronteiras no momento em que uma guerra civil produz um êxodo de refugiados, sem acautelarem que há vias legais para estas pessoas chegarem ao território europeu. Estas são políticas que produzem morte. E que ignoramos ao ponto de não as contarmos nas nossas estatísticas..."

Efi já lidou de perto com o drama. Uma mãe à procura de um filho que se afogou... "Primeiro, ela provavelmente nem consegue obter um visto para chegar à Grécia ou ao espaço Schengen. Se já está na Europa e pode circular talvez consiga encontrar pistas junto da guarda costeira, se não passaram mais de seis meses. Mas não há nenhum sistema a que possa recorrer para saber o básico: que antes tem de ir às autoridades e declarar o desaparecimento do seu filho."

Os familiares que tiveram a sorte de encontrar Efi Latsoudi no meio deste caos conseguem saber mais. Entre outras coisas, Latsoudi conhece bem o novo cemitério de Lesbos.

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A assistente social Efi Latsoudi deixou a sua vida em Atenas e mudou-se para Lesbos, onde ajuda, como pode, os refugiados. Criou um campo de acolhimento e um cemitério Nikos Pilos

Fica em Mitilene, no topo de uma colina, ao fundo de um caminho íngreme e estreito, de onde se vê o cintilante Egeu. Passamos pelo velho cemitério da igreja ortodoxa Agios Panteleimon, com as suas campas de mármore cobertas por seixos brancos, redondos e oblongos, com as fotografias dos mortos e orquídeas frescas em vasos. Atrás, num campo estéril, lamacento, fica o cemitério que Latsoudi iniciou em 2015.

"Dilan Huseen 2015" diz um rectângulo de mármore no chão. "Alia Grgis 2015" um outro. Estes são os casos tristes, explica Efstratios Yannakis, o homem que cavou muitas destas sepulturas. O trabalho só estará completo com mais tristeza, explica. Como a de um pai que procurava pelas suas duas crianças desaparecidas e que as encontrou aqui, depois de as identificar pela inumação de campas anónimas. Só assim se consegue restituir aos mortos deste cemitério o mínimo: Um nome, uma data de nascimento, talvez uma fotografia e algumas flores.

Efi Latsoudi lembra-se da história de um homem sírio, que falava um excelente inglês, e procurava pela mulher e pelo bebé que perdera há 20 dias. Ele tinha duas coisas raras: muito dinheiro e um passaporte europeu. Mas já tinha estado em Rodes e em 10 locais diferentes do outro lado do mar, na Turquia, antes de procurar em Lesbos. A sua família estava ali, também em campas anónimas.

"É tão desumano não ter uma campa. Não ter um funeral... Imaginem o que seria isto connosco? Por que devemos aceitar para os sírios ou os eritreus aquilo que não aceitamos para nós?", pergunta Latsoudi.

A pesquisa de Thomas

Em 2016 desapareceram, pelo menos, 4742 pessoas no Mediterrâneo, o nosso mar, como lhe chamavam os romanos. É uma estimativa da Organização Internacional para as Migrações (OIM), calculada para o período entre 1 de Janeiro e 12 de Dezembro último. A OIM não faz segredo da sua metodolgia: o número é calculado com base nos relatórios das guardas costeiras, dos médicos legistas, reportagens dos media e entrevistas com sobreviventes de naufrágios.

O ACNUR, que foi até ao ano passado liderado por António Guterres, informou em Outubro passado que 2016 estava a ser "o ano mais mortífero da história". Segundo os cálculos do Alto Comissariado da ONU, em 2015 houve um afogamento por cada 269 pessoas que conseguiam atravessar o Mediterrâneo. Em 2016 houve uma morte por cada 88 chegadas com vida.

Este aumento gigantesco no risco da travessia tem algumas explicações. Não só porque os traficantes passaram a usar barcos de borracha, mais pequenos, e muito mais perigosos, por serem mais dificilmente detectáveis pelas operações de patrulha, e também militares, que a União Europeia lançou nos últimos dois anos. Mas também porque a única rota que permanece "aberta" para os traficantes é a travessia, longa e perigosa, entre a Líbia e a Itália. Isto é o resultado do acordo assinado entre a UE e a Turquia, em vigor desde 20 de Março. O Estado turco recebe uma compensação de seis mil milhões de euros para impedir que os barcos de borracha saiam das suas praias em direcção à Grécia. Este acordo diminuiu drasticamente a pressão em Lesbos.

Entre o Outono de 2015 e a Primavera de 2016, havia dias em que chegavam nove mil refugiados a Lesbos. De então para cá há dias em que não chega nenhum. Ou 28, ou 60. Os corpos deixaram de aparecer na costa.

E Aphrodite Andrikou voltou a poder ter fins de semana. A conservadora de Lesbos tem orgulho no que faz: "Eu registo a história. Para mim isso é o mais importante, deixar escrito o que se passou." Os registos de óbito que ela preenche são sobre pessoas concretas, ou o que delas resta. Andrikou recebe os relatórios dos médicos legistas do hospital, e é com base neles que preenche as certidões, o melhor que pode. "Às vezes não temos nome, nem data da morte. Às vezes nem sequer sabemos qual é o sexo da pessoa. É muito triste. Uma vez tivemos uma criança sem cabeça..."

Aphrodite Andrikou não se lembra de ver um único representante das agências europeias a entrar no seu gabinete, e derrubar o telefone fixo. Mas recorda o dia em que lá entraram investigadores de uma universidade holandesa.

Nos dois últimos anos, 12 investigadores holandeses visitaram 536 registos municipais como este, em cinco países (Grécia, Malta, Itália, Espanha e Gibraltar – do Reino Unido) para saber quantos óbitos de refugiados tinham sido declarados. 

A equipa, liderada pelo professor Thomas Spijkerboer, da Vrije Universiteit de Amsterdão, deixou um contributo. Os registos de Lesbos só passaram a ser informatizados em 2013. Antes disso, as certidões eram manuscritas. Os holandeses digitalizaram o arquivo entre 1990 e 2013, e filtraram os refugiados e migrantes.

No fim tinham construído uma base de dados. E tinham um número: 3.188 mortos, certificados.

"É um número limitado, mas não é uma estimativa, vem de fontes sistemáticas", diz-nos o professor Spijkerboer, enquanto louva a consciência dos funcionários que encontrou nos registos civis. É tranquilizador ver como se dedicam a registar mortes de "desconhecidos", criando a possibilidade para que alguém, mais tarde, os possa vir a identificar, ou a reclamar os seus restos mortais.

Thomas Spijkerboer acredita que seria possível criar uma base de dados europeia sobre refugiados, incluindo os mortos e desaparecidos. E que tal seria um serviço público inestimável para aqueles que os procuram. “Nós apenas reunimos os dados que as autoridades locais já tinham trabalhado. Todos os registos civis estão informatizados, por isso este trabalho seria feito facilmente. Talvez seja preciso apenas compatibilizar o software. Nós podemos ajudar. O que falta é apenas a vontade de o fazer.”

Este grupo de universitários holandeses lançou o repto ao Parlamento Europeu para que se iniciasse um Observatório Europeu da Morte dos Migrantes, e que isso, acredita Spijkerboer, traria um contributo humanitário enorme, com pouco esforço e gastos. “Mas não recebemos qualquer resposta”, lamenta.

Os cientistas notam um facto: Antes de ser mensurável, estatístico, antes de ter números e dados, um assunto não é reconhecido publicamente, não faz parte da agenda de debate. Se não são contados, os mortos não contam.

Katja Franko, professora de criminologia na Universidade de Oslo preocupa-se com isso. Com uma colega está a estudar a forma como a Frontex opera naquilo a que chama “fronteiras humanitárias”. Franko acredita que a rede EUROSUR podia ser um instrumento relevante para recolher, partilhar e publicar informação sobre as mortes na fronteira – quando nem nos próprios centros coordenadores se sabe exactamente para que serve esta rede que custa 200 milhões aos orçamentos nacionais e comunitário.

Enquanto a Frontex não o fizer, sublinha esta professora, nunca existirá uma estratégia para resolver o problema. “Quando fazemos de algo um assunto de interesse estamos também a assumir uma responsabilidade. Quando a morte dos migrantes se torna visível ela torna-se uma obrigação moral, impele-nos a fazer qualquer coisa”, acredita Franko.

Spijkerboer acrescenta que os Estados-membros não estão interessados em assumir uma responsabilidade pelas mortes na fronteira europeia, um problema que atribuem totalmente aos traficantes. “Mas não será responsabilidade dos Estados? As políticas europeias de fronteira mudaram. O número de mortos tem vindo a aumentar. É perfeitamente legítimo perguntar se estes dois factos estão relacionados. E, se estiverem, alguma coisa tem de ser feita…”

Pål Erik Teigen, comandante norueguês do navio Siem Pilot, atracou no porto de Trapani, na Sicília, com 12 corpos a bordo Francesco Paolo Lannino
O comandante Teigen participa desde 2015 nas operações da missão Triton, nas águas entre a Itália e a Líbia. Recolheu 27,798 pessoas com vida. 91 cadáveres. dr
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Pål Erik Teigen, comandante norueguês do navio Siem Pilot, atracou no porto de Trapani, na Sicília, com 12 corpos a bordo Francesco Paolo Lannino

A lição do comandante Chumbo

O barco norueguês Siem Pilot acaba de atracar no porto de Trapani, na Sicília. Traz 12 corpos. Um agente funerário coloca 12 caixões a bordo, alinhados no convés. Três são pequeninos, de crianças.

Pål Erik Teigen é o comandante do barco e ainda não se refez da raiva. Já é um veterano neste mar, participando desde 2015 nas operações da missão Triton, nas águas entre a Itália e a Líbia. Recolheu 27,798 pessoas com vida. 91 cadáveres. Os mortos aqui são um assunto sério.

“Se alguém, daqui por 30 anos, vier perguntar-nos por um morto que tenha estado a bordo do Siem Pilot, nós saberemos responder. Tiramos fotografias, recolhemos amostras de ADN e impressões digitais de todos. Despimo-los a todos e registamos os ferimentos. Damos toda esta informação às autoridades italianas e à polícia norueguesa”, explica Teigen.

Mas muitos dos que se afogam desaparecem no mar. Foi o que acabou mesmo agora de acontecer à maioria dos ocupantes do bote de borracha que naufragou antes da chegada do Siem Pilot. Teigen e os seus colegas foram chamados às quatro da madrugada de 2 de Novembro de 2016. O barco norueguês estava a sete horas de distância. Houve outros barcos que chegaram mais depressa. Todos conseguiram salvar 29 pessoas, no meio de ondas de dois metros e ventos fortes.

Um dos sobreviventes media 30º de temperatura corporal no termómetro. O pessoal médico conseguiu subir-lhe a temperatura até aos 36º antes de o enviar, de helicóptero, para um hospital italiano. Muitos não se tinham em pé. A maioria apresentava feridas abertas nas pernas, por terem estado demasiadas horas comprimidos num barco de borracha sobrelotado, cheio de água salgada e gasolina. Os sobreviventes eram migrantes da Costa do Marfim, da Guiné, do Mali e dos Camarões. Pagaram entre mil e 1500 euros pela viagem. Estariam a bordo 140 pessoas antes do naufrágio. “Perdemos 99. Continuo a pensar nesse número. É muita gente…”, lamenta Teigen.  

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Ouvir as crianças marcou-me imenso. Transporta-nos, quer queiramos quer não, para a lembrança dos nossos filhos. Essa é a realidade. Parece que está ali o nosso filho a ser salvo” Comandante Jorge Chumbo

O subchefe Pacheco Antunes recorda: “A minha equipa iniciou a patrulha. Recebemos um aviso de Pireu [Atenas]. Uma embarcação lançou um alerta de dificuldades. Foi no início do dia, no lusco-fusco, e percebemos que estava uma embarcação praticamente submersa. Criamos alguma tranquilidade, para não haver quedas ou acidentes. Ninguém falava inglês. Eram sírios, mais velhos. Começaram a dizer-nos que estava alguém na embarcação. Fomos a bordo e estava uma senhora debaixo de vários outros, já debaixo de água. Recolhemos a pessoa e já não tinha sinais vitais. Fazemos logo monitorização de sinais vitais, manobras de recuperação. Havia familiares a bordo. Mas toda esta experiência, que começa nas dificuldades no país deles, e culmina nesta fuga, deixa marcas... Para nós eles lidam com a morte com alguma frieza. Mas se calhar não temos verdadeira noção do que eles passaram para chegar ali. Estavam lá familiares, mas viveram tudo de uma forma serena, não sei se é a palavra certa.”

Quando há familiares, os polícias portugueses têm uma regra: “Tentamos deixar as pessoas conduzir o processo.” Naquele caso não houve funeral.

O comandante Jorge Chumbo liderou o navio patrulha oceânico Viana do Castelo em diversas operações da missão Triton. Em águas italianas e espanholas, o drama é sempre o mesmo. “Só se tiverem laços familiares é que podemos saber quem são os mortos. Para alguns o sofrimento continua. Alguns desapareceram e mais ninguém vai saber deles.” A única coisa que as tripulações podem fazer é entregar os corpos que recolhem às autoridades em terra. As autoridades seguem o processo, “para tentativa de reconhecimento do corpo”. No final será um “cadáver anónimo", uma "pessoa desconhecida".

“O primeiro salvamento marcou-me muito. Foi uma embarcação de madeira, com 201 pessoas a bordo, e crianças. Estava na ponte do navio e desloquei-me à parte inferior onde se estava a recolher as pessoas. Ouvir as crianças marcou-me imenso. Transporta-nos, quer queiramos quer não, para a lembrança dos nossos filhos. Essa é a realidade. Parece que está ali o nosso filho a ser salvo”, lembra.

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Pacheco Antunes e Paulo Huerta: Os dois polícias marítimos portugueses estiveram na operação Poseidon, no Mar Egeu. O contacto diário com a morte marcou-os. enric vives-rubio

Em conversa com um jovem imigrante sírio, Jorge Chumbo percebeu mais: “Como é possível para estas pessoas o mar tornar-se mais seguro do que a terra? Estava a falar com aquele jovem... Tens 50% de hipóteses de sobreviver nesta aventura. E ele respondeu-me: Mas mais vale agarrar-me a estes 50% do que aos 10% que tenho no meu país. É este o espírito que trazem com eles. É uma lição de vida para mim.”

Jorge Chumbo conheceu casos extraordinários. Guineenses que demoraram um ano a chegar à Líbia, e pagaram 3500 euros cada um pela viagem, aos traficantes. “Tinham de parar, trabalhar, juntar dinheiro, até chegar à Líbia.” Pacheco Antunes recolheu marroquinos e senegaleses no Egeu, na outra ponta do Mediterrâneo.

As lanchas da polícia marítima tinham outro combustível depois de recolherem corpos do mar: “Raiva.” “Sentimos raiva aos traficantes. Leva-nos logo no dia a seguir a andar atrás deles. Apanhámos cinco facilitadores. Os traficantes não aparecem nunca. Estes facilitadores até podem ser emigrantes, refugiados, que pagam assim a viagem.”

O negócio, já se sabe, é mais rentável e seguro que o tráfico de droga. “É mercadoria com pernas...”, diz, com ironia triste, o subchefe. “Quando fomos para lá era para fazer o controlo transfonteiriço, combater o tráfico de seres humanos e os outros crimes. Mas com este êxodo de gente a prioridade foi a parte humanitária. Devíamos erguer um tampão. Mas é impossível fazer um muro na água. Esse tampão levava a que eles furassem os botes e nós tínhamos de ir salvar.”

A missão portuguesa terminou em Setembro de 2016. Os polícias marítimos foram homenageados pelo Presidente da República. Mas o regresso foi difícil.

“Quando cá chegamos percebemos que havia uma exaustão.” “A adaptação à chegada não é fácil, apesar de termos apoio psicológico.”

O truque é lembrar, falar sobre o assunto. “Nós todos acabávamos por fazer isso uns com os outros. Numa das refeições do dia tínhamos a equipa toda junta e partilhávamos estas coisas. Era um escape. Era terapêutico”, lembra o subchefe.

Paulo Huerta: “Costumo dizer isto à minha filhota: Há ali momentos em que se não fosse a chegada das nossas embarcações, aquelas pessoas não tinham sobrevivido. Nós contribuímos para que aquelas pessoas pudessem continuar o trajecto delas.”

Pacheco Antunes: “Depois de estarem safos, olhava para eles e pensava: Nós temos muita sorte, cá…”

A bordo do Siem Pilot há um drama. Uma das 29 sobreviventes perdeu dois filhos e um irmão. Os tripulantes perguntam-lhe se quer ver as fotos das três crianças mortas que estão nos pequenos caixões. A mulher diz que sim.

“Identificou o mais pequeno. Era seu filho. Perguntámos se queria uma pequena cerimónia em que se pudesse despedir dele. Ela quis. Foi duro… A dor é igual, connosco e com eles”, conta Teigen.

De seguida, a mãe foi transferida para uma lancha da guarda costeira italiana com os outros sobreviventes, em direcção a Lampedusa. O filho veio no Siem Pilot para a Sicília. A mãe sabe? “Não sei. Vamos informar Lampedusa de que o corpo da criança está na Sicília.”

PÚBLICO/INVESTIGATE EUROPE
Investigate Europe é um projecto iniciado em Setembro de 2016, que junta nove jornalistas de oito países europeus, que o PÚBLICO integra. Financiado pelas fundações Hans Böckler Stiftung, Düsseldorf, Stiftung Hübner und Kennedy, Kassel, Fritt Ord, Oslo, Rudolf-Augstein-Stiftung, Hamburgo, e Open Society Initiative for Europe, Barcelona, destina-se a trabalhar temas de interesse europeu. A organização não-governamental belga Journalism Fund, que apoia projectos jornalísticos plurinacionais, é a entidade responsável pela gestão financeira e administrativa deste projecto.

*com Crina Boros, Elisa Simantke, Harald Schumann, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore e Wojciech Ciesla.


 

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