Estivemos em parte nenhuma e em lado nenhum

Andar a pé conta-me tantas histórias como abrir o jornal todos os dias. Faz-me falta andar a pé horas, perceber que essa ideia dos tempos mortos afinal não existe, que esse tempo morto está vivo.

Nós queixávamo-nos porque era de noite e aquelas estradas sem fim não iam ter a lado nenhum. As poucas placas que havia apareciam e desapareciam, como se alguém nos estivesse a ver passar de carro e fosse a correr virá-las, pôr a seta precisamente no sentido contrário ao que seguíamos. Se calhar, estávamos perdidas, mas eu não dei por ela. Estávamos a caminho de lado nenhum, é óbvio que tínhamos de dar mais voltas.

Não valia a pena olhar para os mapas, e nem que valesse, eu não olhava na mesma. Perco-me tantas vezes que já não me assusto. Nem que esteja alguém a virar placas às escondidas, nem que seja de noite e não haja iluminação. Não troco a esquerda, nem a direita, o que faço é escolher as ruas à sorte. E chego sempre a lado nenhum. E é sempre uma surpresa. Nunca lá tinha estado antes.

Desta vez foi numa viagem, do outro lado do Atlântico. Mas não é preciso ir tão longe. Perco-me muitas vezes, mal saio de casa, e ando sempre a tentar perder-me mais. De carro não tem tanta graça, mas a pé sim. Passamos por grafitis que nunca vimos, vemos a política nas paredes, aquelas frases estão tão longe dos discursos no Parlamento.

Não tenho ido a pé para o jornal, o que fiz durante muito, muito tempo. Não há nenhuma razão para ter deixado de o fazer e é promessa para 2017 voltar ao meu velho hábito – se a cumprirei ou não é tão fundamental como chegar a qualquer lado. A ideia é sempre chegar a lado nenhum, caso contrário seria uma perda de tempo, o que também é fundamental. Demoro uma hora, ou mais, a fazer o caminho de casa até ao jornal, e muitas vezes mais uma hora a regressar.

Foi sempre nestas caminhadas que me lembrei de uma história para escrever. Foi sempre nestas caminhadas que desatei algum pensamento. Foi sempre nestas caminhadas que me apaixonei por alguma coisa pequenina, uma banalidade qualquer do dia-a-dia. Faz-me falta chegar a lado nenhum, é um sítio cheio de coisas pequeninas. E cheio de gente, de miúdos, de velhos, de pessoas a resmungar, de gente aos gritos, de gente calada, de adolescentes a namorar, de gente à espera, de gente a meter conversa.

Fazem-me falta esses tempos mortos: eu estou a andar, nada está parado, passam os autocarros, passam as pessoas. Nem eu estou parada. Não são tempos mortos, afinal. O tempo é precisamente o que está a passar à minha frente e, magia, eu estou com tempo para vê-lo.

Fazem-me falta as caminhadas, os tempos mortos. Há quem não suporte uma caminhada em silêncio. Ou um jantar, ou seja o que for. Fazem-me falta as caminhadas, os tempos mortos, uma impressão de vazio que não é, porque as ruas estão cheias, e já fiz essa experiência em ruas à noite, quando não passa quase ninguém. Mas passa sempre uma história qualquer.

Em 2017 vou regressar à minha rotina. Andar a pé todos os dias, mas escolher sempre um caminho diferente, olhar para cima num dia, para os telhados e para o céu; para baixo, no outro, para os degraus das casas e para o passeio. Andar a pé conta-me tantas histórias como abrir o jornal todos os dias. Faz-me falta andar a pé horas, perceber que essa ideia dos tempos mortos afinal não existe, que esse tempo morto está vivo. Um repórter tem de andar a pé, sem medo de se perder e de perder tempo. Porque vai chegar muitas vezes (ou sempre) a lado nenhum. Mas aí vai haver, claro, uma história para contar.

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