A nova ordem internacional iliberal

Uma das características mais invisíveis, mas mais importantes, do mundo em que vivemos é a ordem internacional. Não faz manchetes de jornais porque é um conceito sobejamente abstracto, porém tem um papel fundamental na forma como os Estados se relacionam entre si. Trata-se do conjunto de normas, valores e instituições internacionais que balizam as regras do jogo e permitem a cooperação aos mais diversos níveis, bem como a punição dos países infractores das regras.

A corrente ordem internacional foi criada pelos vencedores da II Guerra Mundial. A Guerra Fria bloqueou, até certo ponto, as Nações Unidas, mas os presidentes Roosevelt e Truman criaram um espaço defensivo e de paz entre os seus aliados para travar o expansionismo e a ideologia soviética. Esse espaço, o Ocidente, foi-se sedimentando ao longo das décadas de conflito bipolar naquilo a que se veio a chamar uma comunidade pluralista de segurança: a partilha dos mesmos princípios e valores, a disposição de defender não só o território como a forma de vida, e o estreitar de laços comerciais para assegurar bem-estar e prosperidade. Os Estados Unidos eram percepcionados como os líderes do mundo livre. A “meia hegemonia”, na expressão feliz de Joseph Nye, que assegurava a distribuição de bens comuns como a estabilidade internacional e comercial.

O colapso da União Soviética teve dois resultados imediatos: a crença generalizada de que o mundo tinha chegado ao “fim da história”, ou seja, não havia rival ideológico para a democracia e os princípios do mercado livre; a existência de legitimidade para expandir a ordem ocidental, que agora assumia, sem cerimónias, o nome de ordem liberal. Expandiu-se a NATO e a União Europeia, abriram-se as portas da Organização Mundial de Comércio (OMC) a países como a China e a prioridade estratégica norte-americana passou a ser a de facilitar, expandir e mesmo impor, num caso ou noutro, a democracia. A agenda liberal expandiu-se e sobrepôs-se aos velhinhos valores da soberania (cada Estado tem em igualdade de circunstâncias o dever de não interferir nos assuntos de outros Estados) em excepções relacionadas com direitos humanos e individuais.

O esmero exagerado nos direitos do indivíduo (consagrado na Responsabilidade de Proteger, que dita que qualquer Estado pode intervir em território alheio em caso de grosseira violação de direitos dos cidadãos) e uma abordagem tão cosmopolita dos limites de acção dos países iria acabar por aborrecer Estados que preferem a soberania e que não gostam que terceiros se imiscuam nos seus assuntos domésticos. Daí que não tenha sido uma surpresa que, primeiro a Rússia e a China, e mais tarde a Índia e o Brasil (estes últimos de uma forma mais suave) tenham começado a contestar a ordem e a propor alternativas, quer a título individual, quer dando vida aos BRICS. A China fê-lo desenvolvendo relações privilegiadas com países em vias de desenvolvimento com base num conjunto de regras diferentes. A Rússia implementando e expandido uma esfera de influência geopolítica. O Brasil e a Índia contestando o poder dos EUA nas instituições internacionais. No conjunto, todos contribuíram para que académicos e decisores políticos se começassem a preocupar com a ordem internacional. Passado cerca de um quarto de século, muito parecia estar em aberto com a ascensão ou reemergência de novas potências. Havia possibilidades concretas de que a ordem internacional pudesse vir a sofrer alterações, para uma forma mais iliberal, nas décadas que aí vinham.

O que ninguém esperava, pelo menos até há um ano atrás, é que essas alterações para uma ordem mais iliberal pudessem vir dos Estados Unidos. Mas a presidência de Donald Trump representa exactamente isso: um recuo acentuado no liberalismo internacionalista. Senão, vejam-se as visões para o mundo que o 45º presidente já tornou claras: a democracia liberal deixou de ser uma referência indispensável da legitimidade internacional; as alianças permanentes passaram a ser questionadas, chegando-se no caso da NATO ao ponto da ameaça de não cumprir o artigo V se os europeus não pagassem mais pela sua segurança; os líderes autoritários e ou iliberais, como Vladimir Putin, Recep Erdogan e Viktor Orbán, são elogiados; a Rússia revisionista é identificada como uma possível aliada preferencial para resolver um conjunto de problemas internacionais, tais como a rivalidade com a China, a Guerra na Síria e o combate aos ISIS; os acordos de comércio livre são para rasgar, ou renegociar; não houve, no último ano, uma qualquer menção aos direitos humanos, a não ser para criticar a Alemanha pela sua “desastrosa” política para os refugiados.

Mais. Trump já assinou diplomas para revisão do Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA), para a revogação da presença americana na Parceria Transpacífico (TPP) e para tornar na prática impossível o regime climático acordado na Cimeira de Paris. E o novo presidente promete não ficar por aqui. Quando repete a “América Primeiro”, subentende-se que não está mais disposto a pagar o preço da liderança mundial e pretende um esvaziamento da presença americana nas instituições internacionais e uma política externa com base só e apenas no interesse nacional, que por sinal, no seu entendimento, coincide com o proteccionismo – o que em si só desmorona a ordem económica vigente.

Por todas estas razões, daqui a uns anos podemos olhar para o dia em que Donald Trump se tornou presidente dos EUA como o momento do fim da ordem internacional liberal e do início de uma nova ordem internacional iliberal. 

Universidade Nova de Lisboa e IPRI-UNL

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